Para o criador do conceito "racismo recreativo", muda-se a mentalidade ao ocupar espaço no debate público
Começou ainda na infância o incômodo do jurista Adilson Moreira com o humor no Brasil. Toda segunda-feira, era a mesma coisa na escola: os colegas de classe reproduziam as piadas que ouviram nos programas de TV do fim de semana. Estavam lá todos os estereótipos que associam corpos negros à inferioridade: o negro burro, “cachaceiro” ou feio, e a “mulata” gostosa, fadada ao serviço doméstico, sem dentes ou descabelada.
Os anos passaram, e Moreira construiu sua carreira estudando a ligação entre racismo e direito. Fez graduação, mestrado e doutorado, mas, para o último título, teve de ir à Universidade de Harvard. Não encontrou no Brasil pesquisa em sua área de interesse, o direito antidiscriminatório. Hoje, Moreira dá aulas sobre o tema na Universidade Mackenzie.
Com base nas suas pesquisas, experiências e acúmulo teórico, Adilson José Moreira cunhou o termo “racismo recreativo”, apresentado em livro homônimo de 2018 (coleção Feminismos Plurais, da Editora Jandaíra, ex-Pólen). A discussão voltou à tona após (mais uma) piada racista no Big Brother Brasil, da TV Globo. No episódio, o cantor Rodolffo comparou o cabelo afro do professor João Luiz à peruca de homem das cavernas.
No livro, reeditado em 2019, Moreira também analisa cerca de 150 sentenças que acessou no Judiciário brasileiro, em que acusados e condenados de racismo argumentam que seus atos não poderiam ser vistos como crime. Eram piadas, comentários que usavam de “humor”, brincadeiras.
O livro foi um alívio. Consegui criar uma teoria sólida para revelar à sociedade brasileira uma forma prática de racismo que sempre permaneceu encoberta
Adilson José Moreira
Em entrevista a Ecoa, em 25 de Abril de 2021, Moreira avalia que identificar piadas que fazem uns rirem e outros chorarem é só um primeiro passo. O próximo seria fazer do direito antidiscriminatório matéria obrigatória em cursos de direito.
Ecoa – No livro, há exemplos de como o ambiente de trabalho pode ser hostil com pessoas negras e como o Judiciário ameniza esses episódios: tira questões do campo do racismo e atribui tudo ao humor. É possível promover uma mudança para essas decisões pararem de se acumular nos tribunais?
Adilson Moreira – O racismo é um sistema de dominação complexo, que dá motivo para diferentes formas de discriminação. Quando eu tentei estudar o tema, em 1990, não havia nada escrito a respeito. Nos Estados Unidos, o Direito Antidiscriminatório existe desde os anos 1970, com o propósito de diminuir a disparidade entre grupos raciais. Para isso, precisa saber o que é igualdade, suas diferentes dimensões e teorias, e o que é discriminação. Se perguntar para os juízes brasileiros, todos vão dizer que discriminação é um tratamento arbitrário e intencional. Outros saberão o que é discriminação indireta, mas 90% dos juízes não têm a mais remota ideia do que é discriminação institucional, interseccional, organizacional, o que são microagressões. Eles não conhecem psicologia social da discriminação, o que a motiva, qual a psicologia do preconceito, dos estereótipos, como afeta o desenvolvimento psicológico de pessoas negras.
Muito do altíssimo nível da insatisfação da sociedade com o Judiciário vem do elitismo presente na instituição e de os operadores do direito não estarem adequadamente capacitados para analisar a realidade brasileira profundamente. Para modificarmos a situação atual, temos de mudar a educação jurídica brasileira. O direito antidiscriminatório precisa ser uma disciplina obrigatória.
Ecoa – No livro, você esmiúça a ideia de que a piada racista tem efeitos para além do momento em que é contada. Por que é importante discutir essa lógica de que a piada gera mais do que risadas?
Adilson Moreira – O humor é uma mensagem cultural, que só faz sentido em um contexto cultural específico. Por exemplo, se eu digo em tom jocoso que “o céu é azul”, as pessoas vão olhar para mim sem entender a graça. Mas, se eu digo em tom jocoso que “negros são macacos”, muitos brancos vão cair na gargalhada. Isso significa que elas reagem a sentidos que expressam um consenso cultural entre os membros desse grupo. Neste caso, o consenso é que negros não têm o mesmo nível de humanidade de pessoas brancas e que negros podem ser comparados a animais.
Esse componente cognitivo não só faz com que pessoas riam de piadas racistas aos 10, 15, 30 ou 60 anos de idade. É um esquema mental que as acompanha em todas as dimensões da vida. É o mesmo que motiva as pessoas a acharem que negros não são funcionários melhores, por exemplo. Desde que nasceram, profissionais de recursos humanos foram culturalmente treinados para perceberem qualidades positivas em brancos. Ser assim já é sinal de que o sujeito é mais competente para uma vaga de trabalho do que negros, asiáticas ou indígenas.
Ecoa – Sobre o que ocorreu no BBB: como explicar a alguém que passa a vida inteira associando negros a inferioridade que isso não é só uma piada?
Adilson Moreira – Ao longo dos anos, esse tipo de comportamento não era visto como problemático, porque o espaço público era dominado por pessoas brancas. Mas, nos últimos 20 anos, pessoas negras têm chegado à universidade e produzido conhecimento sobre a experiência da comunidade negra em várias áreas: medicina, direito, arquitetura, etc. Uma das formas que de mudarmos a mentalidade é ocupando espaço no debate público. O racismo sempre foi discutido a partir da perspectiva do homem branco. Isso tem que mudar.
Por muito tempo, o racismo foi pensado como um comportamento individual baseado na compreensão inadequada do outro: após uma experiência negativa com uma pessoa judia, negra e asiática, o indivíduo pressupõe que todas têm o mesmo defeito e generaliza para o grupo.
Durante muito tempo, estudiosos pensavam que o racismo era um problema de natureza cognitiva. Mas isso tem mudado. Branco e negros têm posições distintas na estrutura de poder, e o racismo recreativo é uma estratégia por pessoas brancas e instituições controladas por elas para legitimar essas relações hierárquicas
É difícil convencer pessoas brancas porque o problema não é o convencimento. A função do racismo não é meramente cognitiva. Essas pessoas e instituições estão engajadas na prática porque há interesse material na discriminação. Como o privilégio branco depende da opressão negra, é preciso convencer a sociedade que negros não são atores sociais competentes. Só dessa forma é possível continuar tendo acesso a oportunidades e privilégios pelo simples fato de ser branco.
Quando usam racismo recreativo, pessoas brancas não estão só se divertindo. Isso porque ele é uma política cultural que referenda por meio do humor a ideia de que negros não são atores sociais competentes. Isso permite que pessoas brancas hostilizem minorias sociais sem perder uma imagem social positiva
Ecoa- Como o mito da democracia racial colabora para perpetuar o racismo recreativo?
Adilson Moreira – O mito da democracia racial é crucial para compreender a dinâmica do racismo. Esse conceito explica o sentimento ambivalente de determinadas pessoas brancas. Sempre foi uma característica das relações raciais no Brasil. Muitos brasileiros brancos, de esquerda e de direita, afirmam não serem racistas porque até têm amigos negros e vão a desfiles de escolas de samba. Conviver com pessoas de outras raças não significa que você não seja racista, da mesma forma que ter envolvimento sexual e afetivo com mulheres não significa que você não seja sexista.
O argumento do “amigo negro” se apoia na ideia da cordialidade do povo brasileiro, que é o propósito da narrativa cultural da democracia racial. “Aqui não tem racismo”, “o problema é de classe social”, “racistas são os norte-americanos”. É um discurso que protege a imagem positiva de pessoas brancas.
Ecoa- Mas quando isso é apontado há pessoas, principalmente na esquerda, que se ofendem individualmente e apontam a discussão como “identitarista”.
Adilson Moreira – Esse entendimento equivocado vem por não saber como a identidade pessoal é formada. Há uma dimensão individual: eu me reconheço como uma individualidade, com experiências particulares. Outra dimensão é a social, em que estes elementos se unem a outros, socialmente construídos, que são atribuídos a mim.
Raça é uma identidade socialmente atribuída, um marcador social e de status dos membros e das pessoas dentro das relações. No caso da negritude, um marcador de inferioridade social. Quando negros, mulheres e homossexuais lutam por justiça não é só porque a identidade é importante. É para que essa forma de identidade, socialmente atribuída, e os estigmas que a acompanham, não continuem impedindo que se viva dignamente.
A esquerda precisa aprender que é uma busca para não ser afetado negativamente pelos estigmas sociais atribuídos ao fato de ser mulher, negro e homossexual
Ecoa – Manifestações mais abertas de racismo já são moralmente, e até legalmente, condenadas. Mas você trata no seu livro de outra modalidade: as microagressões. O que são elas?
Adilson Moreira – As microagressões são padrões de comportamento, produções culturais e mensagens não suficientemente graves para serem classificados como discriminação passível de gerar processo judicial, mas que expressam condescendência, desprezo e ódio por minorias raciais.
Quando saio à rua, a minha experiência cotidiana como homem negro é ver dezenas de mulheres brancas se afastando, pensando provavelmente que só posso ser ladrão ou estuprador. Elas andam na rua como quiserem, não posso processá-las por atravessarem a rua. Mas o ato é uma microagressão por dizer: “eu acho que você é um criminoso por ser negro”.
Ecoa – Como elas estão ligadas ao racismo recreativo?
Adilson Moreira – Um tipo de microagressão comum no Brasil é homens próximos a um descendente de asiático perguntarem se alguém topa “comer um japinha” no jantar e todos caírem na gargalhada. As pessoas acham que estão sendo engraçadas, que não há racismo ali porque convivem com colegas de ascendência asiática. Mas, para a pessoa que ouve, é falta de respeito a sua identidade étnico-racial e sexual.
Como acontece diariamente, afeta o bem-estar das pessoas. Quando se chega a um novo local, seja faculdade ou trabalho, todos querem demonstrar competência e criar relações de amizade. Quando se está num ambiente em que pessoas desrespeitam negros, asiáticos e indígenas, a mensagem é “não importa o esforço feito, não vemos você como alguém digno”.
Adilson José Moreira é autor dos livros ‘Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica’ e ‘Tratado de direito antidiscriminatório’, ambos editados pela Editora Contracorrente.