O texto elogia a reedição do livro "A Revolução Burguesa no Brasil" de Florestan Fernandes, destacando sua relevância histórica e sociológica
Texto originalmente publicado no site “A Terra é redonda”.
Uma classe social não se constrói sozinha. Sem o acicate da disputa do poder com outra classe eventualmente também em formação, a inércia histórica se impõe e abre espaço para toda sorte de aberrações. Havendo vitalidade, os grupos sociais efetiva ou potencialmente em competição como possíveis embriões de classes encontram meios para sustentar a disputa mais importante de todas: aquela dirigida ao exercício continuado do poder na sociedade.
Por que recordar isso aqui? Afinal, dirão alguns, isso é o que cabe esperar de qualquer análise política preocupada com os rumos de uma sociedade em processo de formação histórica como a brasileira. Se aceitarmos sem mais esse julgamento acabaremos cometendo injustiça ao sociólogo a quem mais se deve na formulação do problema da constituição da sociedade brasileira com base na dinâmica das classes, Florestan Fernandes. Muita coisa que aparece ainda que indiretamente naquilo que se escreveu sobre o tema nas últimas décadas foi proposta com maior clareza e de modo mais consequente por Florestan em repetidas ocasiões, mas especialmente em uma obra fundamental.
E é esse livro, A revolução burguesa no Brasil, que em boa hora acaba de ser reeditado, em edição especialmente bem trabalhada que inaugura nova edição das obras daquela figura maior da Sociologia brasileira, sob os cuidados de Bernardo Ricupero. O responsável pela edição é bem conhecido pelos seus estudos sobre pensamento brasileiro, entre eles um livro sobre o romantismo novecentista e a ideia de nação no Brasil, que Florestan certamente teria consultado se já estivesse disponível em sua época.
Em matéria de cuidado editorial o livro oferece muito mais do que normalmente seria de se esperar, ao ponto de se localizar a fonte exata de referências vagas e ocasionais, como ocorre no pequeno debate sobre a obra de Florestan que fecha o volume como posfácio. Outra característica insólita da edição é que o texto da quarta capa, escrito por Bernardo Ricupero, longe de ser mera apresentação da obra, forma na realidade um mini-ensaio vigorosamente interpretativo. Recorrendo-se ao jargão, trata-se de livro imperdível, mesmo para quem já tenha outra edição.
Por que, afinal, ler ou reler esse livro difícil, que junta textos escritos em momentos diferentes, sempre com cerrada argumentação (se há autor que não admite conversa mole é Florestan)? Tanto no prefácio quanto na quarta capa a questão central aparece. A resposta está na atualidade dos problemas de que trata, junto com o modo peculiar como Florestan organiza sua análise. que faz daquele livro um desafio para quem se propõe enfrentar o momento presente com visada larga e não restrita ao noticiário cotidiano.
Está em causa a revolução burguesa. Quando se realiza plenamente, isso envolve o movimento histórico no qual uma classe de feição burguesa se torna dominante ao pnto de imprimir sua marca no modo capitalista de organização da sociedade. No caso brasileiro, que interessa a Florestan, essa classe burguesa que busca sua afirmação como tal representa peça maior em um complexo que envolve para ela dois problemas. Por um lado, a persistência de antigos grupos dominantes secundariamente vinculados ao avanço capitalista. Por outro, o empenho de segmentos sociais reduzidos a peças subordinadas por se fazerem valer social e politicamente, ou seja, constituir-se como classe oposta à dominação burguesa. Simplificando ao extremo, velhos fazendeiros numa ponta e operários na outra.
O livro examina a complexa dinâmica das relações que se estabelecem ao longo de uma escala temporal que se estende desde a constituição da nação independente em 1822 até o auge do regime autoritário sob égide militar na passagem da década de1960 para a de 1970. Isso significa um longo trajeto, com três partes, das quais a segunda é um esboço de tratamento de tema da “ordem social competitiva”, central no pensamento de Florestan. No conjunto ele conduz das “origens da revolução burguesa” à “revolução burguesa e capitalismo dependente”, culminando no decisivo capítulo reservado para “o modelo autocrático-burguês de transformação capitalista”.
O rigoroso tratamento das relações de tipo dinâmico ao longo do tempo e das relações de tipo mais estático no interior da sociedade em cada recorte temporal, associado ao exame das mudanças no padrão de relações com o cenário capitalista externo serve exatamente para exibir o essencial. O que se demonstra no livro é a transfiguração histórica da revolução burguesa em modelo autocrático-burguês. Uma proeza intelectual ímpar na sociologia brasileira, só possível quando a busca da verdade dos fatos em registro científico vem associada à busca militante de um padrão igualitário e justo nas relações em registro político.
Pode-se argumentar que a ideia de “autocracia burguesa” tem papel fundamental na análise de Florestan na medida em que ela se aproxima do final do período contemplado. Nela se encontra uma síntese daquilo que confere ao livro sua aguda atualidade. Para além da análise da divergência entre a ordem autocrática e sua exata oposta, a ordem democrática, na qual a consolidação da primeira obsta o avanço rumo à segunda, a questão da autocracia é rica o suficiente para a seleção de uma presumível (porque não se encontra assim no livro) característica sua, que convida a desdobramentos.
É que nela se conjugam duas tendências opostas, que, examinadas juntas, ajudam a dar relevo a um aspecto interessante da vigência hoje do livro. A expressão autocracia burguesa envolve duas partes. Uma, mais “dura”, corresponde à concentração de poder em termos autocráticos, sólida e contundente, com todos os seus efeitos. A outra, mais maleável e plástica, corresponde à classe burguesa (ou ao conjunto de classes burguesas ou ainda a frações de classes, divididas conforme áreas de atividade econômica como analisa Florestan.
Tal unidade problemática resulta em efeitos importantes na dinâmica das relações de classes, que se transmite às dimensões política e social, embora não linearmente. Isso deriva da instabilidade inerente a tal arranjo, no qual transparece a assimetria entre a classe (aberta em princípio a avanços na ordem política e social) e o padrão autárquico fechado de exercício do poder. Embora esta formulação não se encontre assim no livro, ela exprime bastante do caráter e os dilemas dessa figura histórica tensa que é a autocracia burguesa.
Em sua análise, Florestan vai desenredando a malha das relações políticas e sociais que se forma em cada período, da independência nacional ao auge da ditadura quando o livro foi publicado, em 1974, até os prenúncios de seu ocaso para dar lugar à “nova república”. Nisso demonstra passo a passo como a burguesia brasileira vai abrindo mão do pleno exercício de seu poder de constituir-se como classe inteira contentando-se na garantia de acesso a vantagens distribuídas no espaço do bloco dominante sem se empenhar em efetivamente se tornar dirigente.
Isso significa que a assimetria entre classe e autocracia se resolve para a burguesia ao assumir posição defensiva, menos disposta a buscar energicamente o poder na sociedade e assegurá-lo mediante legitimidade do que a se satisfazer com posição meramente vantajosa em cada momento. E isso com a segurança, obtida pela ação, aí sim ofensiva, na contenção do avanço da outra grande classe rival, a dos trabalhadores.
O complexo jogo que assim se arma no cenário do poder político e econômico não se esgota nele, mas penetra em todas as dimensões da sociedade, ao gerar seu efeito mais importante. Consiste ele no constante deslizamento de uma posição para a outra e, como efeito mais fundo e mais importante, a incorporação no interior de cada instituição e grupo social daquela dinâmica pela qual o rígido e o maleável se interpenetram e geram um ambiente pouco nítido, pastoso, que vai permeando a sociedade toda.
E, ao fazer isso, contribui para gerar aquele padrão no qual o impulso autocrático adere visceralmente à atuação rotineira da classe dominante. É que a autocracia, como concentração do poder político numa posição autocentrada, não é recurso à disposição da burguesia, a despeito do que o título do livro possa sugerir, mas na realidade ganha autonomia e em cada momento ameaça impor sua capacidade de definir as regras do jogo.
O resultado é a contínua confusão, em todas as posições e níveis da sociedade entre o que é relativamente maleável (no caso, a classe, mas isso igualmente se aplica às instituições) e aquilo que se impõe sem mais, com a consequência de que tudo que se apresenta como aberto à consulta e a deliberação desliza rumo à coerção institucionalizada. Isso enquanto o sistema institucional se liquefaz, sujeito ao atrito constante entre o que é maleável e o que é rígido na organização do poder em todos os seus níveis. A grande perdedora nessa dinâmica é sem dúvida a ordem democrática, continuamente tolhida em seu desenvolvimento.
Enfim, acicates à reflexão não faltam nesse livro em boa hora reeditado com trabalho editorial de tão alta qualidade.
*Gabriel Cohn é Professor Emérito da FFLCH- USP. Autor, entre outros livros, de Weber, Frankfurt(Azougue).
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