Lançado em 1987, livro do musicólogo Eeros Tarasti, um dos mais importantes sobre o autor, ganha edição em português
João Luiz Sampaio, Especial para o Estadão – 17 de dezembro de 2021 | 05h00
Quando o finlandês Eeros Tarasti anunciou ao seu professor de piano que pretendia vir ao Brasil, levou uma invertida. A viagem, disse ele sem meias-palavras, era um absurdo. Mas Tarasti, que vivia então em Paris, onde conhecera uma pianista brasileira Anna-Stella Chic e o musicólogo Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, estava decidido.
Chegou ao Rio de Janeiro em 1972, cheio de planos. O mais importante deles, o motivo da viagem: seguir para o Rio Xingu, no Amazonas, e estudar uma música para flautas dos indígenas suyá. Foram oito meses à espera de uma permissão da Funai para empreender a pesquisa. Mas ela não veio. E Tarasti então, o tempo para realizar pesquisas a fim de escrever um livro sobre o compositor Heitor Villa-Lobos.
Vida & Obra foi publicado pela primeira vez em 1987, na Finlândia. Rapidamente tornou-se um dos mais importantes estudos sobre música brasileira. E, quase 50 anos depois da chegada de Tarasti ao Brasil, ganha agora a primeira edição em português, pela editora Contracorrente.
“É notável a alteridade que o livro demonstração, o olhar que ele mantém na relação com uma cultura tão complexa como a brasileira”, diz o musicólogo e professor da USP Paulo de Tarso Salles, especialista em Villa-Lobos e um dos tradutores da obra para o português. “Há, por incrível que pareça, alguns pontos de contato entre a Finlândia e o Brasil. Em relação à Europa, uma produção musical do país tinha uma posição periférica, assim como a brasileira. E o compositor nacional finlandês, Jean Sibelius, também estava muito associado à natureza. Ainda assim, impressiona a empatia de Tarasti em relação à nossa cultura.”
Enquanto esperava pela permissão para viajar ao Xingu, o pianista, musicólogo e antropólogo finlandês Eeros Tarasti manteve-se bastante ocupado. Estudou piano com Arnaldo Estrella, estudou no Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fez cursos na Escola Nacional de Música.
“Ele não ficou sozinho na cidade, isso é certo, foi ciceroneado. E seu contato com a obra de Villa-Lobos com certeza teve alguns guias, pessoas que conheceu. Mas uma coisa que chama atenção no livro é a duração crítica do Tarasti”, explica Paulo de Tarso Salles.
O violonista João Camarero, responsável pela coleção Dissonante, pela qual o livro está sendo lançado, concordam. E acredita que um dos principais motivos da importância do livro está justamente nesse olhar pessoal do autor.
“É uma visão alargar a que ele nos oferece. Tarasti contribuiu com a construção de um Villa-Lobos menos folclórico, mais real, ainda que o próprio compositor, sabemos hoje, tenha trabalhado essa imagem repleta de folclores em sua carreira. Enfim, talvez a gente possa dizer que ele é mais frio, ainda que o adjetivo não dê conta do que o livro realmente é. Melhor seria dizer que Tarasti não é um autor cegamente apaixonado pelo seu tema.”
Essa independência está muito presente, por exemplo, nas análises que o finlandês faz das obras do compositor – o livro mescla biografia com notas a respeitos das obras. E, em muitos casos, examinados visões bastante distintas do senso comum, na seleção de peças e nas análises que faz delas.
Um caso revelador é o das sinfonias. Autores como Lisa Peppercorn, que havia lançado um livro em 1972 sobre Villa-Lobos, consideravam as obras pouco importantes, uma vez que o compositor, nessa linha de raciocínio, se sairia melhor em formas menores e não em obras de maior fôlego. Tarasti cita Peppercorn e não discorda da avaliação. Mas vai além: mesmo o que se pode considerar um erro, arrematado, é revelador de uma busca “por soluções novas”.
“O próprio Vasco Mariz, primeiro biógrafo do Villa-Lobos, desconsiderava essas obras, então chama atenção o interesse de Tarasti. Assim como ele dá bastante importância para as óperas do compositor. Ou enxerga paralelos entre seus concertos para piano e os concertos de Rachmaninov”, diz Salles, que é autor de livros como Os Quartetos de Cordas de Villa-Lobos (lançado pela Edusp) e coordenador, na Universidade de São Paulo, do grupo de estudos e pesquisa batizado de Pamvilla (sigla para Perspectivas Analíticas para a Música de Villa-Lobos).
Um outro ponto a chamar atenção na obra e a preocupação de Tarasti em contextualizar o trabalho de Villa-Lobos à luz da cultura não apenas brasileira como latino-americana.
“Ele faz uma análise muito rica da criação musical no continente, começa no México e vai descendo, Cuba, Bolívia, Venezuela, Argentina”, ressalta Salles.
E, mesmo no ambiente artístico do País, Tarasti foi buscar informações em autores dos mais diversos, como Mário de Andrade, Haroldo de Campos, Gilberto Freyre, José de Alencar, Gonçalves Dias, Jorge Amado, Oswald de Andrade. E, para Salles, não se tratava de “mera curiosidade intelectual”, mas sim de um mergulho de fato nas questões levantadas pelo Modernismo.
“A visão dele sobre a relação com a música popular, ou com uma indicação entre o colonizado e o colonizador, tudo isso aparece de maneira muito clara no livro”, diz o professor. “A todo instante você se depara com esses paralelos, com essas conexões. Isso dá ao livro um caráter muito abrangente, que incorpora possibilidades e pontos de vista”, completa Camarero.
Eero Tarasti chegou ao Brasil em 1972, ou seja, cinquenta anos após a realização da Semana de Arte Moderna – e seu livro é publicado no Brasil às vésperas do centenário do evento que mudou a história da arte no País, e do qual Villa-Lobos foi um dos protagonistas.
“A Semana foi uma virada de página na história da arte brasileira, uma grande explosão”, diz Paulo de Tarso Salles. “Ela apontou para uma modernidade, diferente descrição que se via na Europa. Lá, falava-se em ruptura. Aqui, ser moderno passava por uma questão de identidade. Foi um primeiro passo na busca por um olhar para si próprio. Quando, mais tarde, Tarsila, Oswald, Brecheret e Villa-Lobos vão para a França, entendem que a renovação que se esperava da arte brasileira era justamente o encontro dessa identidade. ”
Tarasti dedica um capítulo do livro à Semana e o faz a partir da descendência de que “a primeira escalada na produção de Villa-Lobos não deve ser avaliada como fazer o desenvolvimento geral da arte brasileira e, sobretudo, da eclosão do modernismo. E, nessa avaliação, ele ajuda a colocar em perspectiva os significados, e também as contradições, do evento”.
Nesse sentido, ele relê autores como Mário de Andrade e Oswald de Andrade; repassa momentos da Semana, como a palestra de Graça Aranha sobre os objetivos dos modernistas; ou recuperar a relação do movimento e de autores como Manuel Bandeira com artistas brasileiros do século 19 ou da virada do século, como Carlos Gomes ou Alexandre Levy.
“Uma das questões que a Semana deflagra é essa tensão constante entre aquilo que é local e o que é internacional, presente ainda em um mundo globalizado. Tarasti estuda Jorge Amado, os artistas da Villa Kyriall, os textos de Oswald, faz um apanhado literário interessante”, coloca Salles.
Para o tradutor, que estudou ao lado de Rodrigo Felicíssimo e Claudia Sarmiento, tudo isso só reforça a importância de Villa-Lobos para os modernistas. “Villa-Lobos era um outsider em um movimento idealizado por uma burguesia esclarecida de São Paulo. Ele tocava em casamentos, em cassinos, vinha de uma relação com a música popular carioca. É interessante que aquilo que o Villa-Lobos recalcava em sua trajetória agora podia ser colocado em primeiro plano. Os demais modernistas viam nele um artista que vinha de outro lugar, com um outro lugar de fala.”