Acordo não é um mero instrumento de arrecadação
Publicado originalmente em Folha de São Paulo, por Valdir Simão, em 07 jan. 2020.
Um efeito do amadurecimento da Lei Anticorrupção é a ampla adoção de programas de integridade por parte das empresas de diversos setores, como conjunto de políticas e procedimentos de controle, incentivo à denúncia e aplicação efetiva de um código de conduta para prevenir a prática de atos lesivos à administração pública.
Esses programas funcionam bem, mas a proteção oferecida por eles não é absoluta. Mesmo com um compliance robusto, a empresa ainda estará sujeita à eventual ocorrência de ilícito, praticado em seu nome por representante ou intermediário. Cedo ou tarde, esse fato será denunciado no canal da empresa e deverá ser investigado de forma independente, como manda a boa prática.
Comprovado o ato ilícito, a empresa corrige as falhas detectadas, pune os responsáveis e resolve colaborar com as autoridades. Propõe um acordo de leniência, para reduzir a multa a ser paga (a colaboração não isenta a empresa da sanção). Esse sistema pragmático, adaptado do modelo norte-americano, pressupõe que os setores público e privado trafeguem juntos no caminho da prevenção, detecção e punição da corrupção. Mas estamos no Brasil —e, por aqui, o pragmatismo encontra obstáculos em cada esquina ou em cada guichê.
Da iniciativa de colaborar podem decorrer duas situações igualmente indesejadas. Na primeira, a administração pública nega a possibilidade de acordo porque já tem conhecimento e provas do ilícito. O denunciante pode ter relatado o fato no canal de denúncias da empresa e, também, na ouvidoria do órgão público envolvido. Na segunda, a administração pública condiciona a celebração do acordo ao pagamento de valores adicionais à multa a título de reparação de danos que não podem ser suportados financeiramente pela empresa —ou com os quais ela não concorda.
Em ambos os casos, a não celebração do acordo obriga o órgão público a instaurar um processo de responsabilização, que poderá demorar meses ou até anos, para que a multa seja aplicada. Caso não paga, ela será inscrita em dívida ativa para cobrança judicial, o que também levará um longo período de tempo.
Se no entender da administração houver prejuízo ao erário, será instaurado um processo especial de tomada de contas para apurar os responsáveis e quantificar o dano. Esse processo específico tramitará no Tribunal de Contas, cuja decisão terá eficácia de título executivo, a ser cobrado por via judicial. Mais alguns anos se passarão e, ao final, pode ser que já não existam condições para pagar essa dívida. Talvez a própria empresa tenha deixado de existir. Dá para imaginar o custo final desses processos para o contribuinte? Vale a pena? É claro que não.
O acordo é sempre o melhor caminho. Não é pouco a empresa reconhecer sua responsabilidade objetiva, pagar uma multa, investir na melhoria de seu programa de integridade e submeter-se a um monitoramento do Estado durante um período de três ou mais anos. Oferecer informações inéditas não é, nem nunca foi, um requisito imposto pela lei brasileira para o acordo de leniência.
Também não é requisito legal da leniência assumir compromisso de quitar danos com os quais a empresa não concorda, calculados unilateralmente pela régua do órgão supostamente lesado. Por que não aceitar, como prova, a apuração de prejuízo produzida por investigador independente ou empresa de auditoria forense que, diferentemente do órgão estatal, pode ter acesso à contabilidade da empresa?
A boa-fé é um princípio basilar do processo negocial, e a empresa merece um voto de confiança do Estado quando comparece espontaneamente como colaboradora. Estamos caminhando bem para a consolidação do acordo de leniência como solução alternativa de litígios com o Estado. Para as empresas, é um legítimo instrumento de defesa. Para os governos, uma ferramenta preciosa para dar celeridade ao processo sancionador e poupar recursos públicos, cada vez mais escassos.
Mas o acordo de leniência não pode ser um mero instrumento de arrecadação ou um cheque em branco, com risco de não ser compensado por falta de fundos.
Valdir Simão – Advogado, ex-ministro-chefe da Controladoria-Geral da União (jan.2015-dez.2015, governo Dilma), e do Planejamento (dez.2015-mai.2016, governo Dilma); é coautor do livro ‘O Acordo de Leniência na Lei Anticorrupção’ (ed. Trevisan)
É co-autor de “Leniência: elementos do Direito da Conformidade, juntamente com Walfrido Warde, pela Editora Contracorrente.