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Estados de exceção: A usurpação da soberania popular – Resenha por Alysson Leandro e Pedro Serrano

“Prefácio” e “Apresentação” do livro recém-lançado de Luis Manuel Fonseca Pires

Prefácio

[Alysson Leandro Mascaro]

Estabelecendo-se numa junção sensível entre o Direito e o Estado, o Direito Administrativo é um plexo relevante dos poderes e da dominação social contemporânea. Exatamente pelo seu caráter de sensível recôndito do poder, a reflexão sobre o Direito Administrativo costuma ser empreendida a partir dos marcos de sua própria narrativa interna, louvando o estabelecimento histórico de competências, medidas e limites do Estado em face da sociedade, das relações intersubjetivas empresariais e do cidadão.

Por tal narrativa, o Direito Administrativo é elemento que permite a ordem e a estabilidade institucional e social contra os arbítrios e os voluntarismos políticos. Tal leitura administrativista é juspositivista, lastreando-se nas definições normativas e na pretensão de que a legalidade limita o poder. Se é verdade que daí se possam até mesmo extrair alguns pontuais proveitos progressistas – reiterando institutos do Direito Administrativo e seus princípios contra as ignomínias do dia –, via de regra essa visão sustenta um uso conservador, confirmando os préstimos do Direito em melhoria do Estado e da sociedade  tal como se apresentam. O louvor do Direito Administrativo é, em geral, o louvor do Estado juridicizado em favor do capital.

Em tal quadro, de injunções e louvores juspositivistas, escasseia a cientificidade do Direito Administrativo que venha a compreender sua natureza histórico-social específica no seio da sociabilidade capitalista. Exatamente porque entrecruza, de modo singular, direito e Estado, o Direito Administrativo é o ponto nodal no qual as características e determinações da forma de subjetividade jurídica e da forma política estatal se demonstram. Tomado por uma mirada científica e necessariamente crítica, o Direito Administrativo não é apenas a afirmação da ordem e da cidadania contra o arbítrio estatal: é, acima de tudo, o mecanismo pelo qual o Estado se estrutura juridicamente para a reprodução da sociabilidade da exploração capitalista, permitindo a marcha da mercadoria e da acumulação (exatamente conforme a dinâmica das formas sociais das quais deriva), atravessado ainda por dominações e opressões múltiplas (típicas de cada qual das formações sociais nas quais se arraiga). Pensar de modo crítico e consequente o Direito Administrativo é pensar a própria crítica ao Estado, à cidadania, à ordem, ao Direito, ao capitalismo. Trata-se de empreitada de fôlego.

Ocorre que tal empreendimento se vê desabrochar, de modo vigoroso, neste livro de Luis Manuel Fonseca Pires. Aqui, sua reflexão sobre o Direito Administrativo avança, fundamentalmente, para a perquirição sobre a soberania estatal no capitalismo. O Estado, que guarda autonomia relativa em face do capital e dos agentes da produção, é, na prática, limitado por estes, em razão de seus interesses e direitos subjetivos, e, ao mesmo tempo, por estes é requerido para que seja soberano e sirva de salvaguarda à propriedade privada, aos contratos, à ordem. A soberania estatal é uma conta que não fecha e, ao mesmo tempo, é sempre mantida sob cálculo nas sociedades capitalistas.

Neste livro, o ponto exemplar da relação entre soberania e Direito Administrativo é o caso brasileiro contemporâneo: uma Constituição Federal promulgada após uma ditadura militar, fundada na declaração da soberania do povo e em princípios de cidadania, e que se defronta, desde então, com um quadro de neoliberalismo, desmonte das conquistas jurídicas de bem-estar social e de crise estrutural do capitalismo.

O problema da Constituição que se afirma em partes e é combatida em outras partes é o âmbito privilegiado para se observar o quanto o Direito Administrativo é atravessado pelas contradições da sociedade contemporânea. Em tal contexto, as erosões, investidas, reconstruções e reconfigurações jurídicas do Direito Administrativo são consideradas pelo auto, como estados de exceção, no plural, dadas suas múltiplas manifestações e forças em disputa. Ao reconhecer que o autoritarismo atual não é igual ao de fenômenos como o fascismo do século XX, embora seja também sintoma da sociabilidade capitalista, o autor insiste com a noção de variabilidade nas experiências de reconfiguração da soberania e do Direito Administrativo hoje.

Para tanto, este livro busca uma reflexão sobre os afetos na teoria política clássica e atual: não é contra o jurista – nem contra o povo – que se faz o combate à soberania e ao Direito Administrativo de pretensões cidadãs. É pelo jurista – e pelo povo, constituído ideologicamente pelo capital – que se destroem a principiologia jurídica e os interesses emancipatórios do povo. Conforme as palavras do próprio autor, “para conseguir existir e sobreviver na atualidade os estados de exceção não podem simplesmente subjugar o Direito, precisam dele como parceiro, voluntariamente a serviço e com amor à causa”.

Desenvolve-se, neste livro, um inventário das definições teóricas e políticas de soberania, desde clássicos como Jean Bodin e Nicolau Maquiavel, no alvorecer da modernidade, até chegar ao tempo das revoluções burguesas que superam as soberanias absolutistas em favor da reorganização capitalista, fincadas então em uma soberania sob o Direito, como no caso da Revolução Francesa, outro tema da especialidade de Fonseca Pires. Ao alcançar a contemporaneidade, esta obra debate fenômenos atuais que põem em xeque a autodefinição jurídica e estatal de soberania: o populismo e o neoliberalismo.

O primeiro dos termos se abre para o debate político, tratando da potência de controle que busca se afirmar pela vontade, ou ao menos não nos termos da legalidade posta. O segundo dos se encaminha para o debate no campo produtivo e econômico sociedade capitalista. Aqui, relembrando o quanto os autores neoliberais dão de ombros à democracia se o que estiver em xeque for a salvação da liberdade do capital – desde o Chile de Pinochet e seus economistas, até o Brasil de Bolsonaro e Guedes, ambos os casos apoiados entusiasticamente por alguns juristas, militares, jornalistas, políticos e pelo grande capital –, expõe-se a contradição estrutural entre acumulação e cidadania.

Transcorrendo o caminho da teoria mais ampla sobre a soberania – na qual se levantam as questões da forma social do Estado e do Direito – e passando pelos problemas teóricos do populismo e do neoliberalismo onde se apresentam as questões da formação social contemporânea –, o autor chega à sua tese a respeito dos estados de exceção na atualidade, fantasmagóricos, dissimulados e fragmentados. Fonseca Pires, neste livro, aponta para o caráter múltiplo e difuso das exceções, perfilhadas juntos à própria legalidade: “prefiro denominar este fenômeno político-jurídico de estados de exceção (no plural) […] porque se escondem, fantasiam-se – geram ilusões –, produzem pantomimas democráticas, esquetes de representação popular, lançam-se sobre a educação, em seguida cedem um pouco, atravessam a cultura para pulverizar a diversidade, mas simulam respeitá-la ao substituir o pluralismo por projetos homogêneos, fustigam permanentemente a liberdade de expressão, esgarçam em ata- ques cíclicos a independência dos demais Poderes, se eles não encampam o projeto autoritário”.

Tal leitura dá-me a alegria de se aproximar da- quela que desenvolvo em Crise e golpe (Boitempo), referindo-me à exceção na atualidade: “o fordismo se valia, preferencialmente, de cálices específicos de marcada exceção, dos quais se vangloriava; o pós-fordismo dilui a ex- ceção em caixas-d’água, para uso crônico”.

Enquanto as análises tradicionais sobre a exceção creem se contrapor a ela proclamando a regra – a norma jurídica, a Constituição, a legalidade, a vida jurídica “normal” –, imaginando estar aí, portanto, a esperança de salvação, este livro avança de modo crítico em sentido contrário.

Resgatando o apontamento de Étienne de La Boétie, no século XVI, sobre a servidão voluntária, Fonseca Pires constata que a exceção se faz, no Direito, com os juristas e mediante eles. O Direito Administrativo, que partilha o espaço da intersecção entre Direito e Estado, é tensionado e depauperado por juristas e agentes estatais. Este livro afirma explícita e contundentemente: o legislativo, a administração pública, o ministério público, a magistratura, a advocacia, a cultura jurídica, todo esse complexo, historicamente, age na legalidade em favor da destruição dela, quando assim reclamam os poderes e interesses dominantes. Exemplificando tal quadro, o autor discorre no livro sobre questões como as políticas públicas reacionárias na cultura e na educação, a ausência de transparência e a supressão do princípio da publicidade, o poder de polícia contra os inimigos, a discricionariedade administrativa e o serviço público.

Expondo a aguda e consequente crítica da contradição entre a reprodução social da exploração e da dominação e o Direito Administrativo, este livro não permite a resposta fácil e anticientífica que via de regra se apresenta no campo jurídico: contra a barbárie, o direito. Pelo contrário, a barbárie se faz com o direito. Daí, se há esperanças pontuais na atuação do jurista e do Direito Administrativo – e este livro se põe a afirmá-las –, a potência crítica desta obra também encaminha a esperança maiúscula para outro campo, materialmente determinante e cuja crítica, portanto, é mais decisiva: a sociedade. Está no modo de produção e nas dominações múltiplas que lhe são coesas o problema; em sua transformação está a solução.

Acompanho de há muito a trajetória de Luis Manuel Fonseca Pires. Magistrado exemplar e justo, cuja judicatura é realizada com grande sentido de responsabilidade e sensibilidade social, professor de direito de entusiasmo e importantes qualidades didáticas, é intelectual de valioso relevo para o direito contemporâneo, transbordando seu conhecimento para vários campos como da ciência política, da filosofia e outros temas da humanidade.

Este livro, ora publicado, é, originalmente, sua Tese de Livre-Docência defendida e aprovada por unanimidade junto à Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no ano de 2020. Fui seu examinador nesta banca e pude atestar as ímpares qualidades intelectuais, curriculares e didáticas de que é portador e ainda também, de modo muito patente, suas especiais qualidades humanas.

Este livro que o leitor tem em mãos é uma obra fundamental para a compreensão e a crítica do Direito Administrativo, do Direito, do Estado e da política. Acima disso, são páginas de ciência a enfrentar as agudas urgências por uma outra sociedade.

Apresentação

[Pedro Serrano]

Estados de exceção: a usurpação da soberania popular, por meio do  qual Luis Manuel Fonseca Pires obteve o título de livre docente em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, realizou, com acurado rigor científico, uma incursão multidisciplinar nos estados de exceção, expressão no plural cunhada pelo autor em razão das características contemporâneas da exceção: fantasmagórica, ao não se assumir como tal nem ser uniforme, dissimulada, ao recursar seu viés antidemocrático e fragmentada, ao minar, em intensidades variadas, os âmbitos da vida democrática.

À proposta transdisciplinar entre filosofia e ciência políticas e da história e, em especial, do Direito Administrativo, amalgamam-se incursões empíricas relativas à exceção. Destaque-se, nesse contexto, que os discursos performáticos e disruptivos do soberano que se comunica em rede, acuradamente examinados pelo autor, são acompanhados de uma preocupante ressalva que permeia e confere relevância aos enfoques zetéticos e dogmáticos: a contemporânea condescendência social com os estados de exceção, legitimando-os.

Precedidas de notas relativas à soberania desde a sua acepção clássica até a contemporaneidade, o autor constata que o populismo, o neoliberalismo e os estados de exceção são, respectivamente, formas político-social, político-econômica e político-jurídica de autoritarismo. Referidos eixos permitirão apontar, acuradamente, a contradição entre o neoliberalismo, de um lado, e a soberania popular e a democracia, de outro e, ainda, compreender a circulação de afetos como elemento essencial para compreensão da organização política da sociedade, bem como elemento constitutivo e identitário dos estados de exceção.

A análise realizada pelo autor é antecedida, igualmente, de aprofundada sistematização teórica da exceção, encampando, em especial, aquela construída por Carl Schmitt, mas sem desconsiderar, por exemplo, a leitura diversa conferida ao mesmo fenômeno por Giorgio Agamben. A justificativa da escolha do referencial teórico smithiano foi a de que a chave de interpretação por ele formulada a respeito do deslocamento do poder soberano, do povo a quem toma para si a possibilidade de decidir as exceções, reside na tensão entre a política e o Direito.

A relação entre política e Direito nos estados de exceção ocorre por servidão voluntária ao restar consignado pelo autor que o domínio do Direito pelos estados de exceção, na contemporaneidade, mais do que subjugá-lo, exige-lhe elevada colaboração, o que ocorre espontânea e docilmente. Portanto, mais do que instrumento à execução e realização do desejo político, nos moldes schmittiano, o Direito, no âmbito dos atuais estados de exceção, confere racionalidade e coerência, isso tudo para fins de busca de legitimidade da exceção.

Adotando como ponto de partida a teoria hobbesiana, segundo a qual o medo da morte representa o sentimento mobilizador da partida do estado de natureza para um estado civil – e, portanto, de formação do próprio Estado –, o autor conclui que o autoritarismo atual resulta da intensa mobilização de afetos, dentre os quais se incluem medo, ódio, ressentimento, decepção, raiva e angústia, todos eles capturados pelo soberano mediante narrativas pretensamente racionais e legitimadoras da imposição de mecanismos de segregação e violência, em prejuízo da pluralidade e da tolerância.

Ainda quanto à temática entre vontade política e Direito, e levando em consideração a premissa de que os estados de exceção recorrem a narrativas persuasivas e complexas justificadoras da opressão, o autor é lapidar ao concluir que o Direito, se não resiste à vontade política autoritária, serve voluntariamente a ela. Por essa razão, a servidão voluntária é, para o autor, a chave de interpretação do papel do Direito nos estados de exceção.

Não são raras as afirmações de que vivenciamos a concretização plena do Estado de Direito. Entretanto, o Estado de Direito é um projeto humano e político, uma concepção abstrata que nunca se realizou completamente em nenhuma sociedade histórica conhecida. Mesmo após as inegáveis conquistas das revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX, que marcaram, em linhas gerais, o fim do absolutismo monárquico e consolidaram os ideais iluministas, a presença do Estado autoritário não deixou de existir nos períodos subsequentes.

Entretanto, é notória a resistência ao trato da questão no Direito Público e, em especial, no Direito Administrativo, o que decorre da forte influência, ao menos no meio jurídico latino-americano, do positivismo analítico de origem kelseniana que, não aceitando a aplicação do direito posto ao caso concreto como objeto passível de trato racional pela ciência jurídica, deixa de reconhecer a decisão de exceção como indagação jurídica relevante. Ademais, não se pode negar a existência, entre nós, da arraigada ideia de puissance publique, antecedente à perspectiva duguitiana de serviço público como vetor da função administrativa, segundo a qual o Direito Administrativo é o ramo do direito voltado, essencialmente, ao fortalecimento do poder do Estado em detrimento dos administrados.

O regime jurídico-administrativo e, em especial, a visão do Direito Administrativo como o conjunto de poderes do Estado em detrimento do administrado, ensejou visões equivocadas e forte resistência ao estudo científico da exceção. Na contramão, Luis Manuel Fonseca Pires vem superar referidas deficiências. Resgatando os antecedentes da sua formação na França do século XIX – muito mais inclinada ao autoritarismo do que à limitação do poder e proteção dos cidadãos – conclui que os fundamentos do Direito Administrativo – quais sejam: função administrativa, regime jurídico administrativo e interesse público – podem frustrar as expectativas que anunciam em suas formulações teóricas se forem instrumentalizados para servir, voluntariamente, à vontade política autoritária especialmente através de políticas públicas reacionárias na cultura e na educação, ausência de transparência, poder de polícia no encalço de inimigos e utilização da discricionariedade administrativa para fins de ocultação de vontades políticas autoritárias.

Ao constatar que os estados de exceção fragilizam, gradualmente, os espaços e sentidos da democracia, bem como espaços públicos da educação, cultura, direitos fundamentais tais como liberdade de expressão e princípios inerentes ao Estado democrático de Direito e à organização político-administrativa, tais como independência dos poderes, a obra assume destacada posição entre aquelas que analisam o autoritarismo na contemporaneidade. Do mesmo modo, a obra, seguramente, se colocará como relevante fonte de inspiração para a resistência ao autoritarismo que se alastra no Brasil atual e que vem sufocando, em simulacro, a soberania popular, bem como os instrumentos democráticos e republicanos, os direitos fundamentais e, numa escala mais ampla, a própria coesão social e o sentimento de pertencimento.

Por fim, a obra confirma a tendência já existente nas obras anteriores do autor de, sem favor nenhum, se inscrever como um dos mais relevantes juristas brasileiros de sua geração.

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