O texto revisita Maquiavel, ressaltando seu papel na liderança e democracia, destacando a importância da virtù e do envolvimento popular no Brasil contemporâneo
Matéria escrita por Ruan de Sousa Gabriel, e publicado pelo jornal O GLOBO no dia 20 de Dezembro de 2022. Confira aqui.
Caso mudar o mundo esteja entre as suas resoluções para o próximo ano, vale a pena estudar a obra de um diplomata florentino que, num livrinho chamado “O príncipe”, afirmou que um governante precisa estar disposto a “atuar contra a palavra dada, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião” se quiser conquistar e manter o poder: Nicolau Maquiavel (1469-1527). De cara, a sugestão causa algum estranhamento. Afinal, “O príncipe” deu origem ao adjetivo “maquiavélico” (pérfido, ardiloso). No entanto, em “Maquiavel, a democracia e o Brasil” (Estação Liberdade), o professor do Departamento de Filosofia da USP e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro escreve que o “Secretário Florentino” é “uma boa inspiração para quem quer mudar o mundo”.
E ele não está sozinho em sua defesa desse maquiavelismo. Nos últimos meses, chegaram às livrarias títulos que destacam a originalidade do pensamento de Maquiavel e contestam sua fama de mau. Os estudiosos reforçam que o autor de “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio” não é um professor de tiranos — ele, inclusive, nunca disse que os fins justificam os meios —, mas, sim, oferece valiosas lições de liderança e até de democracia.
Ou melhor: de republica- nismo. Eles enxergam em Maquiavel um herdeiro de uma tradição que remonta à filosofia grega e foi renovada pelos chamados humanistas cívicos nos primórdios da Modernidade, período em que viveu o autor. O velho Nicolau Maquiavel, quem diria, era um defensor do “governo largo” ou “misto”, que, diferentemente da monarquia e da aristocracia, assegura os direitos dos “Grandes” e também do povo.
Autor de “Maquiavelianas: lições de política republica- na” (Editora 34), Sérgio Cardoso afirma que o florentino tem um bocado a ensinar sobre democracia porque reconhece que a divisão social é uma realidade inevitável. Em “O príncipe”, ele escreveu que “em toda Cidade” encontram-se dois “humores distintos”: o do povo, que deseja não ser comandado e oprimido pelos “Grandes”, e o dos “Grandes”, que desejam comandar e oprimir o povo (e acumular riquezas, é claro). —Para Maquiavel, as instituições são republicanas na medida em que são capazes de trazer o humor popular para a cena política. Ele propõe uma democracia que não é meramente formal ao mostrar que é a pressão popular, o conflito entre o povo e os Grandes, que dá força às leis. Assim, ele nos ajuda a pensar o que hoje chamamos de movimentos sociais —diz Cardoso, que também é professor do Departamento de Filosofia da USP.
Por que, então, maquiavélico se tornou sinônimo de diabólico? Na Inglaterra do século XVII, “Old Nick” virou até um dos nomes do coisa-ruim! Ribeiro explica: Maquiavel irritou as elites ao revelar a natureza pouco decente do poder. “O príncipe” chegou a ser proibido pela Igreja Católica. Cardoso lembra que os pro- testantes franceses fizeram a caveira do autor ainda no século XVI.
"Para Maquiavel, as instituições são republicanas na medida em que são capazes de trazer o humor popular para a cena política. Ele propõe uma democracia que não é meramente formal."
Sérgio Cardoso – Professor do Departamento de Filosofia da USP
"O conceito maquiaveliano de República implica participação e controle popular do poder."
Aldo Fornazieri – Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo
PARTE 2
Os chamados huguenotes se opunham à importação da cultura florentina por Francisco I e à rainha Catarina de Médici, filha da nobreza toscana e acusada de ser um “Maquiavel de saias” (ela é por vezes responsabilizada pelo massacre dos protestantes na infame Noite de São Bartolomeu, em 1572).
No século XX, porém, Maquiavel foi reabilitado por pensadores como o italiano Antonio Gramsci, os franceses Maurice Merleau-Ponty e Claude Lefort (que formou uma geração de maquiavelianos brasileiros) e os ingleses John Popock e Quentin Skinner.
Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Aldo Fornazieri explica que a crise das ideologias (do liberalismo ao marxismo), no fim do século XX, e da própria democracia, nas últimas duas décadas, levou estudiosos a revistarem Maquiavel num esforço para reanimar a política democrática. Além de não ocultar a divisão social, o florentino defendia que as boas leis nasciam justamente dos conflitos entre os “Grandes” e o povo. —Na democracia liberal, as elites dominam o sistema político e servem-se eleitoralmente das massas, mas perdem a legitimidade ao chegar ao poder por não terem contato real com o povo. O conceito maquiaveliano de República implica participação e controle popular do poder — diz o autor de “Liderança e poder” (Contracorrente), no qual escreve que não há nada mais contrário a Maquiavel do que “governar contra o povo”. — A leitura de “O príncipe” é funda- mental para entender como se processam as mudanças políticas. É uma teoria da liderança política que qualifica o que é um líder virtuoso, algo de que o mundo carece atualmente. Obra mais controversa de Maquiavel, “O príncipe” ensina como governantes dotados de virtù são capazes de driblar a fortuna (o acaso, as circunstâncias) e se agarrarem ao poder —nem que para isso atentem contra a virtude cristã. Mas virtù (que vem de vir, varão) não é sinônimo de vício. Muito pelo contrário. Fornazieri a descreve como “a disposição para lutar pela liberdade, pela vida, por justiça, pelo grupo, pela comunidade, pela pátria”. Já Ribeiro afirma que virtù é “a ação humana planejada, consequente, com vistas a resultados”.
Em seu livro, o ex-ministro da Educação questiona se os presidentes do Brasil desde a redemocratização governaram com virtù ou ao sabor dos vendavais da for- tuna. Segundo ele, Lula chegou ao poder e lá se manteve pela própria virtù. Fernando Henrique Cardoso conquistou o poder graças à fortuna (o Plano Real e a indicação do então presidente Itamar Franco avalizaram sua candidatura), mas teve a virtù de “conseguir a aliança das classes antes chamadas ‘conservadoras’, em torno de um projeto que incluía, ainda que modestamente, programas sociais”. Já Bolsonaro se elegeu favorecido pela fortuna (o humor popular rejeitava a política tradicional), mas sua falta de virtù o privou de um segundo mandato. O príncipe, de acordo com o livro e para além dele, no entanto, não deve usar a virtù apenas para permanecer no poder, mas sobretudo para agir, para implementar mudanças que contemplem o humor popular. É essa, diz Ribeiro, a principal lição que a política brasileira pode tirar de Maquiavel. — O Brasil precisa de mui- ta mudança. Saímos do mapa da fome, mas voltamos. Nossos valores democráticos se mostraram muito frágeis —afirma Ribeiro, lembrando que, numa república, além do o príncipe, o povo deve demonstrar virtù. — Seja o governo de esquerda ou de direita, a sociedade brasileira precisaassumiros valores da Constituição. Nos últimos anos, terceirizamos nossa democracia, como se a resistência a um golpe dependesse só dos EUA ou dos militares e não do povo. O que diferencia a democracia de outros regimes é a virtù do povo.