Publicado pela Contracorrente, "Aspectos Relevantes da Lei Geral de Proteção de Dados" explora a LGPD com contribuições de especialistas
Matéria de César Calejon no Portal UOL.
Longe de ser uma construção “esquerdista”, como quer o bolsonarismo, o Estado Democrático de Direito como o conhecemos atualmente é uma construção social secular, cultural e histórica que vem sendo lapidada para dirimir conflitos e possibilitar a coexistência pacífica dentro e entre as nações.
A arquitetura basilar dos estados modernos como a conhecemos surge, de forma ainda incipiente, na Europa, entre os séculos XV e XVII. Com base na longa e violenta crise do feudalismo que precedeu esse período, surge uma nova forma de sociabilidade para organizar os arranjos sociopolíticos e as relações de trabalho e (re) produção do capital.
Em 1648, a Paz de Vestfália sela dois tratados de paz nas cidades alemãs de Münster e Osnabrück para colocar fim à Guerra dos Trinta Anos, que durou entre 1618 e 1648. Onze anos depois, o Tratado dos Pirenéus encerraria o conflito entre a França e Espanha para determinar o início das elaborações dos princípios que caracterizariam os estados modernos até os dias atuais, tais como a tripartição dos poderes, a soberania e a igualdade jurídica entre os estados (teoricamente, pelo menos), a territorialidade fornecida, a não intervenção, o respeito às liberdades civis etc.
Nos séculos seguintes, as constituições modernas foram paulatinamente aprimoradas para garantir um sistema de freios e contrapesos ao exercício do poder em suas diversas expressões, regulamentando assim o papel das Forças Armadas, principalmente, mas não somente.
No Brasil, a Constituição de 1824 afirmava que (art. 147) “(…) a Força Militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir, sem que seja ordenada pela autoridade legítima”. Em 1891, o texto constitucional (art. 14) garantia que “(…) as responsabilidades de terra e mar instituições nacionais permanentes, destinar à defesa da Pátria no exterior e à manutenção das leis no interior (…) e obrigadas a sustentar como instituições constitucionais".
A Carta Magna de 1934 afirmava que as Forças Armadas (art. 162) “(…) destinam-se um defensor a Pátria e garantir os Poderes constitucionais, a ordem e lei”. Os parâmetros constitucionais de 1946 (art. 176) e de 1967 (art. 92), com a Emenda Constitucional número 1 de 1969, também avançaram como ideias de “segurança nacional” e “manutenção da lei e da ordem”, pontos que ofereciam margens para interpretações e se elevado fulcrais na bravata bolsonarista para subverter as regras da democracia brasileira no começo do século XXI.
Apesar disso, a Carta Magna de 1988, muito por conta dos horrores perpetrados pela ditadura militar nas décadas anterior, buscou superar essas ambiguidades e inseriu um capítulo específico para as Forças Armadas intitulado “Estado e das Instituições democráticas”, atribuindo às Defesa militar o papel de garantir os “poderes constitucionais”, excluindo o parâmetro de que a sua subordinação ao poder civil se daria nos “limites da lei”.
Dessa forma, “a função moderadora passa a não ser cominada a um único órgão: é extraída da relação entre os poderes e seus departamentos autônomos”, conforme explica Cláudio Pereira de Souza Neto, no livro Democracia em Crise no Brasil (Contracorrente).
Portanto, o malabarismo semântico do bolsonarismo ao invocar o artigo 142 para tentar assumir o controle do estado representa meramente mais uma ameaça de ruptura institucional. Assim como os ataques aos outros poderes da República, uma tentativa de cercear a imprensa e cooptar os diferentes níveis da atividade policial na federação, a cooptação da Procuradoria-Geral da República, a criação de estruturas paralelas, a militarização da política e a utilização aberta de generais da ativa do Exército em campanhas políticas, por exemplo.
Tais transgressões ou extrapolações esdrúxulas do texto constitucional não visam simplesmente a “transformar o Brasil em uma Venezuela”, como defendido neste espaço pelo colega Vinícius Rodrigues Vieira. Tal posição reduz o debate e desconsidera idiossincrasias histórico-culturais fundamentais à análise mais sofisticada. Em última análise, essas investidas pretendem desmontar toda a ordem institucional brasileira que vem sendo elaborada ao longo dos últimos séculos para transformar o Brasil em um país sem lei, governado pela sanha autoritária, irrestrita e assassina do bolsonarismo.
Cabe aos quadros, que ainda possuem o mínimo de decência, juízes e autonomia nas principais instituições brasileiras, colocarem limites claros aos ímpetos autoritários e autocráticos do bolsonarismo para evitar que os próximos anos cumpram a promessa de terra arrasada e sem lei profetizada pela bíblia do liberalismo.