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A tradução portuguesa da obra O Estado Dual, de Ernst Fraenkel

Editora Contracorrente lança a obra 'O Estado Dual' de Ernst Fraenkel, revelando a dualidade do nazismo. Leitura essencial

Artigo feito por Martonio Barreto Lima e Lenio Luiz Streck, e publicado pelo portal do ConJur no dia 28 de março de 2023. Confira aqui.

Na semana passada, a Editora Contracorrente anunciou que publicará a tradução portuguesa da obra O Estado Dual — Uma Contribuição à Teoria da Ditadura, de Ernst Fraenkel. A tradução virá da versão publicada pela Oxford Press de The Dual State — A Contribution to the Theory of Dictatorship. Não se poderia ter um anúncio mais feliz para o público de língua portuguesa, já que somente se dispõe, além da versão em inglês e do original alemão, de uma edição italiana de 1983, prefaciada por Norberto Bobbio (Einaudi).

Ernst Fraenkel e seu “Estado Dual” merecem deferência em todos os sentidos. Frankel, advogado de origem judia, nasceu em Colônia em 26/12/1898 e faleceu em 28/3/1975, em Berlim, após viver de 1939 a 1951 nos Estados Unidos. Sua banca de advocacia, na Alte Jakobstrasse, 140, de Berlim, era compartilhada com Franz Leopold Neumann.

Se Neumann produziu o clássico Behemot em 1942 (também sem tradução para o português), não menos clássico é o “Estado Dual”. Franz Neumann trouxe-nos uma das mais respeitáveis e rigorosas explicações sobre a estrutura do nacional socialismo alemão, e seus vínculos de conglomerados financeiros e industriais, das burocracias judiciária e militar, e da imprensa com o regime nazista.

Ou seja, Neumann olhou para a grande estrutura. Ernst Fraenkel observou o funcionamento da Justiça, dos juízes nas causas em que advogou… e daquelas que pôde observar quando já fora proibido de advogar desde 8/4/1935, por ordem do Ministério da Justiça do Reich. O Ministério fundamentou sua decisão no parágrafo 3 da “Lei do Serviço Público” (BBG), de 7/4/1933, que “protegia o serviço público dos adversários do regime“. Em 20/7/1940, Fraenkel e sua mulher, Hanna, foram destituídos na nacionalidade alemã. A essa altura, já haviam deixado a Alemanha desde 20/9/1938 para a Inglaterra.

O livro não tem história menos trágica. Fraenkel o escreveu entre 1936 e 1938. O manuscrito em língua alemã (Urdoppelstaat) saiu da Alemanha na bagagem diplomática francesa pouco antes da partida para a Inglaterra. Essa versão somente foi publicada pela primeira vez em 1999. Já nos Estados Unidos, Fraenkel ocupou-se da primeira tradução para o inglês, uma vez que o livro receberia a primeira publicação para os públicos americanos e ingleses — e não mais alemão — o que o levou a procurar facilitar a compreensão sobre o sistema constitucional e político alemão.

Na virada de 1940/1941, a Oxford Press fez a primeira publicação. Após o retorno para a Alemanha de 1951, Fraenkel trabalha na “tradução de volta” de seu Dual State para o alemão, que aparece pela primeira vez em dezembro de 1974 no idioma alemão, pouco antes da morte de seu autor. A publicação em língua inglesa recebeu imediata atenção do público, o que se comprova por resenhas em periódicos e jornais. O mesmo se deu com a recepção na Alemanha, que incorporou os conceitos de “Estado de Prerrogativas” e “Estado Normativo”. O Tribunal Social Federal da Alemanha (Bundessozialgericht) incorporou o a conceituação de Fraenkel em julgado de 11/9/1991, quando classificou a aplicação da pena de morte pelos tribunais da Werhmacht como “Estado de Prerrogativas”.

A tese central do livro de Fraenkel foi muito bem resumida por Michael Stolleis: como foi possível a convivência paralela da normalidade com o terror. Eis a inédita contribuição do Autor para a teoria constitucional e política. Seu principal objetivo era aquele de demonstrar, por meio de decisões judiciais, que a aplicação e fundamentação do direito não passavam de meras fachadas de normalidade, o que permitia o completo esvaziamento da normatividade constitucional e legal.

Fraenkel adverte já na sua introdução da edição de 1940: “não tentarei demonstrar exaustivamente o sistema do direito como um todo; meu esforço será aquele de analisar os dois Estados existentes na Alemanha, um ao lado do outro, que chamarei de ‘Estado de Prerrogativas’ e ‘Estado Normativo’. Por Estado de Prerrogativas, entendo eu o sistema de governo que exerce arbitrariedade e violência ilimitadas, sem qualquer controle legal; e por Estado Normativo entendo o sistema de governo dotado de corpo administrativo que objetiva a salvaguarda da ordem legal expressada nas leis, nas decisões dos tribunais e nas atividades de agências administrativas“.

Fraenkel busca compreender por que atores judiciais permitiram esta convivência. Veja-se o que o livro pode nos ensinar! Há o registro de julgado de 1937 pelo Tribunal do Trabalho do Reich (Reichsarbeitsgericht), o qual fundamentou sua negativa de proteção legal em favor de judeus sob o seguinte argumento: “(…) o reconhecimento dos princípios raciais representados pelo NSADP [Partido Nacional Socialista Alemão do Trabalhadores] encontrou também inequívoca penetração entre as amplas camadas da população, mesmo que não pertencentes ao Partido”. Quando a Suprema Corte se rende ao terror das ruas, não surpreende que as instâncias inferiores não resistam às tendências antijudaicas do Estado de Prerrogativas“.

Claro que tal panorama obrigaria o Poder Judiciário à reflexão de seu papel em momentos de crise, ou, pelo menos, a busca de trabalhar seu passado. Apesar das inúmeras tentativas, especialmente com os processos de Frankfurt, pouco ou nada aconteceu no sentido de responsabilizar o Judiciário para que não se repetissem as tragédias do passado. Helmut Kramer, juiz do Tribunal Estadual de Braunschweig, compartilho esta dúvida em 2001: “Sempre me perguntei como é possível que juristas com sólida formação, por assim dizer, da noite para o dia se transformaram em assassinos de beca? Tratava-se de ambição na carreira? Ou era uma cegueira ideológica pelo nacional-socialismo? Não queriam ser visíveis somente no ambiente profissional?“.

O livro de Ernst Fraenkel consiste numa contribuição insuperável até os dias atuais. Talvez não exista explicação mais consistente, com rara sofisticação argumentativa para quem observa sistemas judiciais e suas relações com a normatividade em momentos de erosão democrática. A obra de Fraenkel significa muito porque procura recuperar a relevância da estabilidade democrática normativa, a qual deve sempre ser preservada. O que não significa ilusão alguma com a sempre presente tentação de extinguir esta mesma normatividade.

Com a publicação anunciada, a Editora Contracorrente presta um grande serviço às ciências humanas e sociais brasileiras.

Boníssima leitura!

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