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Presidencialismo permite que "demagogos carismáticos" conquistem massas, diz jurista – Bruce Ackerman defende nova Constituição no Brasil e diz que "haverá problema" se Bolsonaro se reeleger.

O texto aborda a importância do Brasil repensar sua Constituição, enfatizando o papel do parlamentarismo e questões sobre direitos e liderança internacional

Entrevista feita por David Sobreira, e publicada no portal Jota no dia 25/07. Confira aqui.

Bruce Ackerman é o Sterling Professor de Direito e Ciência Política em Yale, uma das mais conceituadas universidades do mundo. Em seu último livro, Constituições Revolucionárias, traduzido e lançado no Brasil pela Editora Contracorrente, o professor desenvolve uma nova proposta de tipologia constitucional para explicar o processo de legitimação das constituições no século XX.

A obra, que dá início a uma nova série que Ackerman está escrevendo, traz estudos de caso sobre diversas experiências constitucionais pelo mundo, como Índia, França, Polônia, Israel e Irã.

Nesta entrevista, conduzida por David Sobreira no podcast Onze Supremos – e traduzida com exclusividade para o JOTA –, Ackerman visita conceitos importantes de sua pesquisa e adianta conclusões substantivas do estudo de caso que fez sobre o Brasil para o seu próximo livro.

Professor, hoje nós falaremos sobre seu livro “Constituições Revolucionárias”. Esse é o primeiro de uma nova série em que o senhor desenvolve um estudo sobre o processo de legitimação das Constituições no século XX. Eu percebi que o livro não trata apenas de Direito Constitucional, mas traz um vasto conhecimento sobre Ciência Política. Como a ideia de estudar esses processos lhe ocorreu? E, mais importante: podemos esperar um estudo de caso sobre o Brasil no livro porvir?

Ackerman: A Faculdade de Direito de Yale esteve devotada à ideia – que é fundacional na tradição do Civil Law – de que é um erro fundamental considerar Direito, Política e Economia como coisas separadas. A Constituição é apenas um pedaço de papel. Para que ganhe legitimidade, ela precisa ser institucionalizada em instituições existentes, seguindo formas que os cidadãos de um país entendam como legítimas. Se esse processo falhar, a Constituição vai ser apenas um pedaço de papel.

É claro, no entanto, que, de alguma forma, os brasileiros são herdeiros da tradição do Civil Law de Portugal. Por outro lado, a Constituição de 1891 – a primeira Constituição após a partida de Dom Pedro – é copiada dos Estados Unidos. Você vai ver um presidente, duas Casas [congressuais], uma Suprema Corte e uma Constituição escrita.

No decorrer dos anos 1920, o sistema brasileiro funcionou. Ele não funcionou perfeitamente, mas nenhum desses sistemas funcionava. No entanto, ele estava funcionado de uma forma legítima. Então, como isso aconteceu? Essa é a pergunta, porque havia vários pedaços de papel chamados de Constituição na América Latina que não funcionavam.

Então, em 1930, temos a revolução de Vargas. Por que ela aconteceu em 1930? Porque, em 1929, houve a Grande Depressão, que sobrecarregou – e isso precisa ser observado de vários pontos de vista – todos os sistemas constitucionais. Falando relativamente, comparado à França, Alemanha e Itália, a mudança foi fundamental, mas uma revolução em escala humana. Ela não repudiava 1930 e tudo que havia ocorrido antes disso. E de maneira bastante notável, foi uma revolução como o New Deal, nos Estados Unidos.

Nesse sentido, um dos momentos sobre o qual os brasileiros – e americanos interessados nessa relação – devem refletir foi a célebre visita de Franklin Delano Roosevelt [ao Brasil] e seu discurso em 27 de novembro de 1936, no qual ele diz: “Vargas e eu temos os mesmos objetivos”.

É preciso lembrar que Roosevelt era profundamente deficiente, ele respirava com dificuldade e não podia andar, como você sabe. Ele nunca fez uma viagem de navio para fora dos Estados Unidos durante toda a sua doença [poliomielite], até esse ponto. Essa foi sua primeira viagem para fora dos Estados Unidos. Ele poderia ter ido para a Inglaterra… vários países queriam vê-lo e ele vai ao Brasil. Por quê? Porque Vargas e Roosevelt eram corporativistas.

O New Deal exigia que as empresas negociassem com sindicatos. Se eles se recusassem a negociar e os sindicatos entrassem em greve, a greve duraria para sempre. Nada poderia ser feito para prejudicar o movimento. Isso é corporativismo – e eu adoraria que um estudante do Brasil viesse a Yale pesquisar os paralelos – e era algo bastante autoconsciente.

Então, eu vou dar um salto e lembrar que, depois de 1945, nós temos um “novo mundo”. Mais uma vez os Estados Unidos estão repudiando os nazistas etc. e Vargas cai, mas volta a vencer novamente em 1951. Portanto, não era como se a visão corporativista social houvesse morrido no Brasil. Há uma relação fascinante entre essa visão e o socialismo.

Em seguida, temos o próximo período – que foi um momento trágico nas relações entre Brasil e Estados Unidos –, em que Quadros foi eleito para a Presidência, em 1964. Quadros não tem uma linha partidária específica, ele é um conservador em certos temas e centro-esquerda em outros. Mas, por razões que não devemos discutir – apesar de elas existirem –, quando Quadros é eleito, ele é vigorosamente pró-Cuba, justamente após Kennedy conseguir seu único triunfo na política internacional, a crise dos mísseis em Cuba, quando ele forçou os russos a retirar seus mísseis de Cuba.

Nesse momento, a CIA pensou que o Brasil era pró-Castro, o que fez com que Lincoln Gordon [então embaixador] – que em muitos outros aspectos era um tremendo apoiador da democracia – apoiasse o golpe. Esse era um golpe americano em resposta ao incidente. Se Quadros não tivesse essa posição, os Estados Unidos não teriam apoiado o golpe – veja que terrível. E não havia como Quadros saber. A crise acontece em dezembro, eu acho [na verdade foi em outubro], e ele assume a presidência em janeiro. É uma verdadeira tragédia, no sentido grego da palavra.

No entanto – e este é um ponto importante –, a partir de 1985, com as “Diretas Já”, o Brasil faz parte de um movimento mundial pró-democracia. É fácil olhar para o Brasil isoladamente, mas o que havia era uma mobilização pró-democracia, queda do muro de Berlim, mobilização da China na Praça da Paz Celestial [que resultou em um massacre].

As coisas se desenrolaram de maneira diferente em diversos países. O ponto crucial – e aqui eu respondo à pergunta: como isso se encaixa no novo livro que escrevi? – é que a Assembleia Constituinte de 1988 foi um esforço muito similar ao que Gorbachev estava fazendo na União Soviética.

O movimento mobilizado que vinha das “Diretas Já” se tornou complicado. Havia o centro, a centro-direita, a centro-esquerda e os comunistas. Todos estavam lá, mobilizando, exigindo uma nova Constituição para expressar essas reinvindicações revolucionárias e a revitalização da tradição democrática brasileira que, quando comparada a vários outros países, foi relativamente bem-sucedida. Apesar, é claro – e isso também é uma realidade no Estados Unidos – de ter sido dominada pelos ricos. Os Estados Unidos, o Brasil e o México são os países mais plutocráticos do mundo – tirando a Arábia Saudita da equação. Até a Rússia é competitiva, mas não pior.

Isso não quer dizer que não sejamos democráticos. Há uma diferença entre a distribuição de riqueza e se eleitores ordinários têm direito a participar. Dessa forma, o que acontece em 1988 é que Ulysses Guimarães, apesar de ter um número relativamente pequeno de apoiadores na Assembleia, contava com a mobilização popular, o que fez com que conseguisse afirmar o parlamentarismo no rascunho da Constituição.

Há, portanto, essa afirmação revolucionária de um governo parlamentar que, no entanto, enfrenta o fato de que José Sarney – que nunca teria sido eleito presidente – só tinha uma preocupação: por quantos anos ele poderia ser presidente. Então ele faz esse grande compromisso e acaba ficando 5 anos.

Isso é uma “revolução em escala humana”. Em vez de fazer como aconteceu na Venezuela e dizer “nós te matamos e te repudiamos”, fez-se a opção de uma transição com dois elementos, um mandato de quatro anos e um referendo no quinto ano para reafirmar – ou não – o governo parlamentarista.

Então, a minha experiência me levou a analisar a cultura constitucional como separada das crenças políticas, e eu trago isso para o caso do Brasil, onde temos vários casos de marcos no presente momento de desenvolvimento do país. Um desses marcos é o estabelecimento de Assembleias Constituintes, o que aconteceu repetidamente, não somente em 1988. Esses pontos de virada foram marcados por Constituições, até mesmo, até mesmo os militares fizeram isso. Eles não precisavam ter feito. Por que fizeram? É por causa dessa cultura de constitucionalismo. Estava no autointeresse deles ter uma Constituição, o que não se repete em muitas outras ditaduras militares, especialmente quando a Constituição é violada com frequência.

Isso é um tremendo recurso quando consideramos quais são os verdadeiros problemas que o Brasil enfrentará nos próximos 30 anos. Em seguida, eu gostaria de enfatizar que é uma grande vantagem escrever uma nova Constituição de vez em quando. Veja os Estados Unidos, nós temos a mais velha Constituição no mundo e foi por isso que Trump quase conseguiu tomar o poder em 6 de janeiro [de 2021], porque nosso modelo de escolher o presidente fazia algum sentido no século XIX, mas não faz sentindo algum agora – mas nós estamos presos com ele, porque é impossível[1] emendar a Constituição.

No seu livro “We the people (vol. 1)”, o senhor fala de algumas revoluções que eram formalmente emendas, mas que, substancialmente, transformaram a Constituição em algo novo. Por exemplo, a 13ª, 14ª e 15ª Emendas, as Emendas da Reconstrução, elas integraram a população negra e isso criou, eu não diria uma nova Constituição, mas um documento substantivamente diferente [daquele elaborado na Filadélfia].

Ackerman: Absolutamente correto. Nós tivemos grandes mobilizações e transformações. Em comparação, por exemplo, no ano de 1891, quando a República brasileira foi estabelecida. Veja, em 1888 o Brasil aboliu a escravidão. Os Estados Unidos supostamente fizeram o mesmo em 1865. Em 1890, então, os dois países eram idênticos nesse aspecto. O Brasil aboliu a escravidão, exceto na realidade. Nós [Estados Unidos] encerramos a Reconstrução e os negros livres passaram a ficar presos em posições de servidão em meios rurais.

Enquanto o Brasil mandava escravos para a morte nas minas, os Estados Unidos estavam explorando e chicoteando negros “livres”. Então, quando eles se cansavam muito ou ficavam doentes, nós os deixávamos morrer. Portanto, esses dois esforços de reconstrução – que eram “revoluções em escala humana” – falham. Quando eles de fato têm sucesso? A verdade é que nunca houve sucesso.

Contudo, não obstante a diferença entre uma tomada de poder pelos militares em 1964 e o movimento de direitos civis nos Estados Unidos, é possível verificar progresso em ambos os países atualmente. Esse ponto é importante, porque nesses tempos é fácil que ignoremos aspectos fundamentalmente importantes para a história de ambos os países.

Falando especificamente sobre o Brasil, as estatísticas de 2020 mostram que 25% dos brasileiros entre 25 e 34 anos têm diplomas universitários – 27% mulheres e 21% homens. Isso é incrível. É importante notar que as mulheres têm conseguido diplomas em uma velocidade superior à dos homens em todos os países “líderes” no mundo, até que se tornam mães e isso reduz suas participações na força de trabalho. Cinquenta anos atrás quase ninguém, além da elite, tinha diploma universitário.

Dessa maneira, se vocês tivessem uma Assembleia Constituinte agora, seria diferente daquela de 1988, quando, de fato, mobilizações populares conseguiram influenciar o texto constitucional, mas o cidadão médio não era capaz de entender e opinar sobre a questão. Agora, se você tem 60 anos e não tem um diploma universitário, você pergunta para a sua neta o que ela acha e ela vai te dizer. Portanto, essa é uma grande oportunidade para um constitucionalismo iluminista. Além disso, como eu já mencionei, vocês têm essa fascinante afirmação do parlamentarismo, que deveria levar as pessoas a considerar se o presidencialismo é mais propenso a levar demagogos – de direita ou de esquerda – a tomar o poder.

Essa ideia de uma nova Assembleia Constituinte foi apresentada pelo senhor em um Congresso em que dividiu espaço com o ministro Roberto Barroso. Naquele momento, algumas pessoas, especialmente constitucionalistas de viés mais progressista, se mostraram bastante receosos com a ideia, porque vivemos um zeitgeist profundamente reacionário. Os constitucionalistas, então, demonstraram medo de que esse zeitgeist pudesse sequestrar o processo constituinte durante a Assembleia. Então eu lhe pergunto: o que pode ser dito para aplacar o medo desses constitucionalistas?

Ackerman: Bem, olhemos para a Europa, porque há uma crise mundial de constitucionalismo. Isso é uma tragédia, no entanto podemos aprender algo ao observar como crises semelhantes são mediadas por diferentes formas de governo. Então, o que temos é um movimento da direita radical na Alemanha, Itália (sistemas parlamentares), Espanha (em menor grau) e França – deixemos o Reino Unido de lado por enquanto.

Nas últimas eleições na França – caso importante para o Brasil, em razão das semelhanças entre os sistemas presidencialistas – havia um partido de esquerda, um de direita e um de centro. Marine Le Pen venceu por pouco o candidato à esquerda [no primeiro turno], que não era um demagogo autoritário, mas um socialista linha dura. Então, de repente, tínhamos um centrista contra uma extremista.

Na Alemanha, por sua vez, temos uma ascensão cada vez maior do partido “Alternativa para a Alemanha”, que é um partido nazista. Eles têm conseguido espaço no parlamento e todos os outros partidos têm dito: “nós não vamos nos relacionar com vocês de forma alguma”. Se a Alemanha funcionasse sob um sistema presidencialista, seria possível – a depender de como as coisas evoluíssem no Leste – que o partido nazista conseguisse chegar ao segundo turno da eleição para presidente.

A diferença básica entre presidencialismo e parlamentarismo, então, é – e aqui estou desenvolvendo uma ideia construída sobre o trabalho de Juan Linz, em seu famoso artigo “Os Perigos do Presidencialismo” (disponível em espanhol e em inglês) – que, em um sistema presidencialista, você vai às urnas votar em uma pessoa que representa certos princípios. Em um sistema parlamentarista, por outro lado, você vai às urnas votar em princípios.

Dessa maneira, já que você está votando em uma pessoa, isso permite que demagogos carismáticos, como Trump, Bolsonaro ou Marine Le Pen, a chegar no segundo turno, conquistem as massas.

Ao votar em princípios, no entanto, as coisas são diferentes. Tomemos Trump como exemplo. Ele defendeu que mexicanos não deveriam ser autorizados a entrar no país e que o islã não deveria ser considerado uma religião legítima. Com isso em mente – e eu não gosto da conversa do zeitgeist –, pergunto: se essas ideias representassem uma plataforma partidária, quantos votos ela conseguiria? Sendo pessimista, 20%. De forma alguma uma plataforma assim alcançaria 50%.

Há pessoas com as quais discordo, como Romney, por exemplo. Mas ele nunca aderiria a algo assim, ele teria seu próprio partido conservador, defendendo livre mercado e coisas do tipo. Então, em um sistema parlamentarista padrão, há três ou quatro partidos – com um limite impedindo a proliferação partidária –, de preferência representando amplamente o espectro político – esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita e direita.

Nessa situação, a esquerda ou a direita podem ser tomadas por demagogos, inclusive simultaneamente, mas isso não seria “ruim”, porque cada um teria apenas uma fração dos votos. É claro que algo assim é terrível, seria muito melhor que não houvesse tantas pessoas atraídas por essas ideias. Contudo, para que um demagogo saia vitorioso, ele ou ela precisam de 45% a 50% dos assentos no parlamento.

Isso é muito difícil de acontecer, especialmente porque – e isso é verdade por todo o mundo – mais e mais pessoas, sobretudo as com educação universitária, são independentes. Elas não se veem como apoiadores do PT. Eles enxergam que o PT tem algumas boas ideias, o centro tem algumas boas ideias etc. Cinquenta anos atrás, nós tínhamos muito mais membros dedicados de partidos.

É possível afirmar, assim, que Bolsonaro teria tido muito mais trabalho para vencer, o que não significa, obviamente, que isso seria impossível.

Outra coisa fascinante é saber por qual motivo houve essa dramática mobilização protestante no Brasil, nos Estados Unidos e na África. Isso é algo muito peculiar. Eu sempre acreditei que o Brasil fosse um país completamente católico. De repente temos protestantes e protestantes revolucionários! E por que isso está acontecendo nos Estados Unidos e na Europa?

Acredito que o professor Ran Hirschl [Universidade de Toronto] tenha um livro sobre esse fenômeno, o “Teocracia Constitucional”.

Ackerman: Absolutamente. É um livro excepcional e, apesar de discordar dele, recomendo a leitura. Aliás, eu não diria nem que discordo dele, apenas que há um elemento ao qual ele não deu ênfase: o fim da Guerra Fria.

Durante a Guerra Fria, os protestantes radicais entendem que estão diante de uma escolha entre a tradicional democracia constitucional e o comunismo. Diante de tais opções, o que se deve fazer? Apoiar a democracia constitucional.

Daí, quando não existem mais ameaças de ditaduras comunistas, o que acontece é que pessoas como Lula são marcadas como comunistas, e os grupos que fazem isso têm uma vantagem organizacional.

O que estou analisando aqui são estruturas, não pessoas. Dessa forma, minha suposição é que, em um país como o Brasil – em que eu não sei bem a proporção de ateístas, pensamento ao qual me filio, protestantes e católicos –, a escolha entre presidencialismo e parlamentarismo é algo crucial, e eu acredito que o parlamentarismo, de algum tipo entre os vários existentes, será uma contenção importante contra ditaduras.

Com isso em mente, o que deveríamos nos perguntar é: que mecanismos institucionais podem ser usados para reduzir as chances de vitória de um demagogo? Não obstante, assumamos que as pessoas digam que eu estou errado e optem pelo presidencialismo. Bem, nesse caso há várias características no sistema brasileiro que são de fundamental importância, como o Estado de Emergência. Vocês precisam eliminá-lo [da Constituição], em razão da tradição brasileira de abuso recorrente dos poderes de emergência. Some a isso o fato de que a emergência da Covid tem gerado mais abusos. Bolsonaro obviamente está se aproveitando disso.

Mas a pergunta, se vocês realizarem outra Convenção Constitucional, é: o que deve estar na lista de prioridades? A meu ver, o que deveria estar nessa lista é reafirmar o compromisso da deliberação de 1988 e levá-lo a sério, porque aquela tradição é a base de uma geração de conflitos com ditaduras militares. A sua geração só experimentou esse perigo durante [os últimos] três anos, enquanto eles [que lutaram pela Constituição de 1988] passaram uma geração inteira enfrentando esses problemas, sendo presos e mortos por isso. Então, esse é um legado trágico que merece ser considerado.

Eu desenvolvi uma proposta envolvendo uma supermaioria escalonada, que funcionaria da seguinte maneira: o presidente terá a autoridade para declarar a emergência durante 60 dias, devendo convocar uma sessão no Congresso, que deverá aprovar o ato por maioria simples. Não aprovado o ato, cessa a emergência, e a Suprema Corte deverá emitir uma ordem nesse sentido. Por outro lado, se o ato for aprovado, a emergência continuará por mais 60 dias, devendo chegar ao fim, a não ser que 60% dos votos do Congresso aprovem a continuação. Em seguida deve ser exigido 70% dos votos para renovação, e depois 80%. Dessa forma, para que seja possível a instauração de uma emergência por mais de 60 dias e, mais importante, por mais de um ano, seria necessário que o presidente tivesse o apoio dos partidos da oposição, que não teriam interesse algum em apoiar uma medida como essas, a não ser que de fato existisse uma emergência. Neste último caso, se não apoiassem a medida, os partidos de oposição seriam derrotados na eleição seguinte.

Essa “supermaioria escalonada” foi adotada – não nos meus termos – em 2008, quando a França promoveu uma revisão constitucional para eliminar os poderes ditatoriais de De Gaulle para declarar uma emergência sempre que quisesse. A estrutura adotada tem alguma semelhança, mas acredito que a minha seja mais clara.

Clareza, nesse caso, é algo necessário, como bem demonstra a experiência brasileira. Se houver muitos princípios e coisas do tipo, torna-se mais fácil para o presidente demonstrar que cumpriu com os requisitos.

Então, novamente, essa deveria ser uma das prioridades no topo da lista caso vocês viessem a adotar o presidencialismo em uma nova Convenção Constitucional. Outra importante prioridade – e isso não deve ser visto como uma crítica à decisão do Ministro Barroso – é uma crítica à terrível solução que foi dada ao problema relacionado a quais situações um presidente poderia ser substituído por má conduta – o impeachment, no caso.

Eu acredito que a interpretação dele [Barroso] estava correta, mas isso mostra que a Constituição precisa ser alterada. A ideia segundo a qual o candidato que lidera as pesquisas pode ser eliminado da corrida 39 dias antes da eleição é ridícula. Isso foi o que fez Bolsonaro vencer.

Isso precisa ser eliminado. Em seu lugar, por exemplo, poderia ser instituída uma norma que exigisse que qualquer impugnação a candidaturas deveria ser feita em até nove meses das eleições. Em seguida, o Tribunal [Superior] Eleitoral – que deve ter mecanismos de indicação que garantam sua imparcialidade – deverá avaliar eventuais acusações, como os casos de corrupção, por exemplo, e apresentar uma decisão em até seis meses da eleição. Dessa forma, os partidos políticos terão respostas objetivas sobre a possibilidade ou não de seus candidatos disputarem.

Ademais, existem duas partes diferentes da Constituição. A primeira são as disposições sobre accountability (“responsividade”), como faremos os líderes serem responsáveis em vez de usarem seus cargos como uma escada para a ditadura. No caso brasileiro, isso significa separar o presidente do exército, buscando uma forma independente de escolha do comandante das Forças Armadas.

Outra disposição constitucional importante é sobre que papel a [Suprema] Corte deve desempenhar. Aqui é necessário fazer uma distinção entre a Corte como garantidora dos mecanismos contra ditaduras – a exemplo da supermaioria escalonada que sugeri, em que a Corte deve intervir – e da Corte enquanto garantidora de direitos.

Digamos, neste último caso, por exemplo, que exista um direito ao meio ambiente. Deveria a Corte garantir esse direito? Bem, ela não tem a capacidade nem o conhecimento tecnológico para tanto. A Corte, então, poderia impor um tributo em defesa do meio ambiente? Não, isso é o trabalho do Poder Legislativo.

Dessa forma, é possível dizer que a proteção dos direitos depende do direito que você quer proteger. Coisas como a garantia de um julgamento célere e a proteção contra uma decapitação podem ser bem administradas por uma Corte. Contudo, há muitos direitos novos sobre os quais as Cortes – e isso é uma função que pode ser observada na Itália e na Espanha – podem determinar obrigações legislativas, inserindo temas na agenda congressual. Caso o Legislativo não delibere no tempo estabelecido pela Corte, caberá a ela decidir sobre a questão.

Portanto, deve haver um entendimento conceitual muito mais sofisticado das fraquezas e forças da intervenção judicial, bem como a diferenciação entre a Corte enquanto guardiã das instituições democráticas e como garantidora de direitos, porque há, de fato, direitos que a Corte pode proteger.

Em seguida, temos a pergunta sobre qual deve ser o papel do Brasil no mundo. Por exemplo, há uma divisão sobre se as decisões sobre direitos fundamentais, tomadas no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), deveriam ser imediatamente incorporadas à legislação dos países latino-americanos.

Se a sua resposta for “não”, então você está diminuindo o papel do Brasil como liderança na OEA. Vale destacar, aqui, que, por suas tradições, espaço territorial e tamanho da população, o Brasil é – junto ao México e aos Estados Unidos – a fundação óbvia de tudo no “novo mundo”.

Essa é uma decisão fundamental, e eu quero enfatizar que esse é precisamente o tipo de decisão que deve ser feita em uma Assembleia Constituinte. Vale lembrar que um ponto importante sobre organização de Assembleias Constituintes – seguido, inclusive, pelo Chile – é a proibição de que membros do governo (lato sensu) possam ocupar assentos na Assembleia. Se isso acontecer, o evento se tornará um instrumento de política presidencial.

Se, por outro lado, o Brasil disser que a Organização dos Estados Americanos deve articular direitos fundamentais, isso significa que o Brasil não é soberano, mas um líder da Federação da América Latina.

Isso é algo que o Brasil deve tomar a frente, porque, sem o Brasil, a Organização dos Estados Americanos vai desmoronar, algo que já está acontecendo, por exemplo, na Venezuela. Com a liderança do Brasil, seria possível ver um sistema de mútua assistência entre as democracias da América Latina como um exemplo para o mundo.

Esse tipo de coisa é necessário, porque estamos chegando no fim do “século americano”. Os Estados Unidos são a principal potência, mas não lideram mais em questões militares e de soft power – um exemplo disso é o espaço que o futebol tem conquistado em território americano, disputando até mesmo com o baseball. Os Estados Unidos não têm mais o domínio que um dia tiveram, e nós estamos entrando em um século de relativa independência da América Latina, América do Norte, Europa, África, Oriente Médio (que é uma terrível vergonha), Índia e China, e os desafios de liderança serão de um tipo diferente.

Nesse contexto, o Brasil pode desempenhar um papel substancialmente construtivo, especialmente em razão de não estar amaldiçoado pelos fardos do imperialismo, como acontece com os Estados Unidos, Europa, Rússia e China. Além do fato de ser uma potência econômica e desfrutar de uma notável tradição constitucional.

Agora, eu preciso dizer que usei a palavra “Bolsonaro” muito pouco. Se ele vencer a reeleição, haverá um problema. Há uma carta – que conta com meu apoio – solicitando medidas da ONU e dos Estados Unidos caso Bolsonaro, uma vez reeleito, demonstre que destruirá a independência do Judiciário, atacará a democracia etc.

Contudo, as principais questões serão determinadas pelos votantes e as opiniões de Bruce Ackerman não têm qualquer importância.

NOTA

[1] Aqui o professor se refere à extrema dificuldade de emendar a Constituição dos EUA, que exige a aprovação por 2/3 de cada Casa Legislativa, bem como a ratificação por 75% das Assembleias Legislativas estaduais.

DAVID SOBREIRA BEZERRA DE MENEZES – Mestrando em Direito (UniChristus). Pós-graduando em Direito Constitucional (ABDConst). Coordenador do Onze Supremos Podcast.

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