Aporofobia: aversão aos pobres afeta saúde, justiça e cidades. Combate requer educação e políticas inclusivas
Matéria escrita por Leonardo Valle, e publicada pelo portal do Instituto Claro no dia 13 de Setembro de 2022. Confira aqui.
Aporofobia é um termo criado pela escritora e filósofa espanhola Adela Cortina para designar a aversão aos pobres e suas implicações na democracia. “É um neologismo que remete etimologicamente às palavras gregas á-poros (pobre,desvalido) e phobos (medo, aversão)”, descreve a professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Ana Elisa Bechara.
“Segundo Adela Cortina, é uma fobia contra o pobre, que leva a rechaçar pessoas, raças e etnias que habitualmente não têm recursos e, portanto, não podem oferecer nada, ou parece que não o podem”, explica Bechara.“É um termo novo no debate acadêmico e que aborda pensamentos, atitudes, práticas e políticas presentes nas relações sociais que desprezam uma pessoa devido à sua condição puramente socioeconômica. É diferente daquele sujeito que, por opção moral ou religiosa, optou por uma vida simples”, resume o doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Neuro José Zambam.
A aporofobia se manifesta de diversas formas na sociedade, sendo a arquitetura da cidade um exemplo concreto.“As intervenções com lanças, vidros e pedras, colocadas de forma a evitar que a população de rua se aproxime ou busque abrigo, são exemplos objetivos de como essa rejeição, discriminação e violência se materializam nos municípios”, denuncia o padre da Pastoral do Povo da Rua, Júlio Lancellotti. “Contra isso, a saída é deixar a hostilidade, rumo à hospitalidade nas cidades. Tudo o que é hostil tem que ser superado”, enfatiza o missionário.
Zambam ainda cita ruas de bairros centrais e de elite recebendo mais serviços de limpeza e sinalização em comparação às localizadas nas periferias. “Em Passo Fundo (RS), observo que a periferia não conta com paradas de ônibus com bancos, onde idosos podem sentar ou uma mãe amamentar seu filho. Ao contrário dos bairros centrais e habitados pela classe média e elite, que contam com paradas estruturadas”, diferencia.
“Há uma pré-disposição moral e política que rechaça o pobre, que o exclui do convívio de ambientes nos quais outras pessoas estão”, analisa Zambam. “É como dizer que o pobre não tem função social, não é desejável, é preferível que nem esteja visível, porque sua presença incomoda”, acrescenta Bechara.
Psicóloga e mestra em saúde coletiva, Eliana Barbosa Pereira vê diferentes formas como a aporofobia se manifesta na saúde. “Falar em aporofobia é falar sobretudo de preconceito de classe. Apesar de na última década ter havido uma ampliação de acesso ao ensino superior, historicamente o setor da saúde é constituído por uma classe elitista, principalmente a médica”, contextualiza.
“Além disso, na sociedade atual, a miséria é diretamente relacionada à criminalidade e à violência, então, essa é uma questão que intensifica esse preconceito”, analisa. Segundo ela, a aporofobia se expressa quando um profissional de saúde recusa o atendimento a um usuário do serviço que está com a higiene pessoal, por exemplo, considerada inadequada. “Na maioria das vezes, é o caso de pessoas em situação de rua”, descreve.
Outra situação é não explicar para a pessoa pobre qual a suspeita diagnóstica ou o tratamento escolhido, ou fazê-lo utilizando-se termos puramente técnicos.“Não se preocupa em garantir que esse sujeito compreenda o que está sendo dito e desconsidera a sua autonomia. Uma ‘consulta’ deveria necessariamente estar vinculada a escutar e compreender diferentes aspectos da vida desse paciente”.
“Assim, mudanças na formação e no currículo formativo das profissões da área de saúde são urgentes para instrumentalizar o profissional no cuidado em saúde das pessoas em situação de pobreza”, aconselha.
Segundo os pesquisadores, o próprio Direito manifesta com frequência um modelo aporofóbico. Em 2019, um levantamento da ONG Conectas sobre dois mil casos judiciais que tramitavam em São Paulo (SP) concluiu que pessoas de classe alta e média — capazes de pagar fiança, multa e acessar com facilidade a defesa —, não eram presas preventivamente, ao contrário das classes menos favorecidas.
“Como acontece com o sistema de justiça criminal, que seleciona e pune os marginalizados. Por isso que a população carcerária é, em sua maioria, formada por jovens pretos, pardos e pobres”, contextualiza Bechara. “Trata-se de uma política de criminalização da política social: tratar indivíduos socialmente vulneráveis não mais como sujeitos que devem ser protegidos e respeitados pelo Estado, mas como fonte de riscos para outros indivíduos que são menos vulneráveis e não marginalizados”, explica Bechara. “Isso leva à criminalização da pobreza, ilustrada nos inúmeros exemplos de pessoas presas por subtrair do mercado alimentos ou itens básicos de subsistência”, acrescenta.
Mas por que a aporofobia acontece? “Uma das causas pontuadas por Adela Cortina é a desigualdade social, de forma que superar a aporofobia passa por processos políticos e educativos que diminuam essa desigualdade”, analisa Lancelotti. Zamba compartilha a mesma opinião e indica como saída programas de distribuição de renda associados aos de geração de empregos.
“A aporofobia gera mais desigualdade e, no extremo, discursos de ódio, irracionalidade e violência. Assim, deve ser combatida com políticas de inclusão social, afirmativas e educativas. Não com violência, mesmo que institucional”, alerta Bechara. Já o Padre Júlio Lancelotti vê a necessidade de reconhecer os preconceitos internos para transformar a situação social. “A aporofobia se encontra estruturada dentro de todos nós e precisamos desconstruí-la diariamente”, finaliza.