O livro critica a influência dos mercados financeiros na economia globalizada e alerta para desarranjos nas práticas civilizatórias
Por Victor Hugo Santana, em 09 out. 2017, em Revista IUH.
“A área acadêmica da economia, em extensão considerável, sucumbiu ao poder dos mercados financeiros globalizados. Renomados professores universitários norte-americanos foram acusados de terem alinhado, de forma suspeita, o conteúdo de suas produções acadêmicas aos enunciados úteis ao sistema mantenedor das grandes finanças”, escreve Victor Hugo Santana, professor do Curso de Ciências Econômicas – Unisinos, ao comentar o livro Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo”, de autoria de Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo, economistas.
No livro, sublinha o Victor Hugo Santana, “os autores expressam a desconfiança de que o mundo não padeça apenas o sofrimento de uma crise periódica do capitalismo, e sim “as dores de um desarranjo nas práticas e princípios que sustentam a vida civilizada”.
No livro lançado neste ano, os autores, através de fundamentação assentada em argumentos sólidos e dados estatísticos, identificam e fazem a crítica dos processos dominantes no capitalismo contemporâneo, situando o presente momento em uma perspectiva histórica ampliada.
A obra está estruturada em sete capítulos, além da introdução. O propósito, mencionado no início, é o de “desenvolver uma avaliação dos processos sociais, econômicos e políticos que alteraram de forma profunda as articulações e a dinâmica das economias capitalistas desde a estagflação de meados dos anos 70 do século passado”. A complexa realidade que se impôs instituiu novas configurações de poder entre os participantes do processo, em uma escala ampliada e profunda de dimensão mundial. Particularmente, direcionam suas críticas à narrativa predominante na Ciência Econômica, que expressa um “retrocesso conceitual mascarado de avanço científico”, e cuja finalidade principal é a de propiciar o fundamento argumentativo justificador da nova situação.
No capítulo inicial denominado democracia versus plutocracia, situam que a imensa liberdade fruída pelas finanças globalizadas, uma característica central da presente etapa histórica do capitalismo, tem início nas desregulamentações ocorridas na primeira metade da década de 1970, as quais marcam o fim dos controles no sistema bancário implantados dentro do New Deal, do Presidente Roosevelt, voltados a enfrentar as agruras da Grande Depressão, nos anos 30 do século passado.
No início dos anos 70 ocorre o colapso dos arranjos monetários e cambiais pactuados na Conferência de Bretton Woods, em consequência, entre outros fatores, dos novos direcionamentos dos fluxos de comércio provocados pela recuperação econômica das economias europeias e japonesa, que passam a competir por mercados com a produção americana, inclusive dentro dos Estados Unidos, país que passa a conviver com uma realidade de déficit em suas transações com o exterior. Os gastos militares norte-americanos no ambiente da Guerra Fria também drenaram dólares para o exterior, os quais se acumularam nas praças financeiras europeias, sobretudo, levando o governo a suspender a conversibilidade do dólar em ouro em 1971, e a desvalorizar a moeda para enfrentar a concorrência estrangeira, pondo fim às regras vindas de Bretton Woods. O aumento dos preços do petróleo em 1973, aumentou ainda mais o volume de dólares reciclados dos países produtores para os bancos europeus, e também norte-americanos.
Tal contexto expressa a combinação de vários elementos, que, em conjunto, decretam o fim do grande crescimento econômico ampliado do pós guerra, conhecido no meio dos economistas como consenso keynesiano, por estar muito assentado em um papel mais ativo por parte dos governos nas economias, tipicamente através de políticas fiscais e do crédito.
No novo momento, o dólar se fortalece e os Estados Unidos passam de credores a devedores em sua própria moeda, avança a dívida pública norte-americana e as grandes empresas financeiras passam a atuar em vários segmentos do mercado e multiplicam-se as formas e os produtos ofertados. Os mercados financeiros ficam muito mais destravados, e assumem uma enorme predominância na economia contemporânea. As agências de classificação de risco passam a adquirir grande destaque a partir de então.
A globalização revolucionou a estrutura produtiva mundial. Pode-se constar três grandes transformações concomitantes, a da reorganização da estrutura produtiva, que resultou nas cadeias globais de valor; as fusões e aquisições que transformaram o sistema financeiro, ocasionando a forte redução no número de empresas e, por fim; a centralização da propriedade, que conduziu a economia mundial a ser dominada por um número reduzido de empresas, em geral dos países altamente desenvolvidos.
A realidade econômica que se impunha ganhou correspondência nas propostas políticas a partir de então, e são representativos no início os governos de Margareth Tatcher, na Inglaterra, e de Reagan, nos Estados Unidos. A consolidação desses macros movimentos acabou por afetar todas as esferas da vida social, como, entre outras mencionadas pelos autores, o ensino e a pesquisa em economia, a amplitude das ações dos governos nacionais, o papel que passam a desempenhar as mídias sociais de massa, as relações de trabalho e a distribuição da renda e da riqueza no mundo. Todas essas instituições, a partir de sua inserção específica, se transformaram para se enquadrar aos requisitos dos novos tempos, com resistências variadas.
Os autores avaliam que a área acadêmica da economia, em extensão considerável, sucumbiu ao poder dos mercados financeiros globalizados. Renomados professores universitários norte-americanos foram acusados de terem alinhado, de forma suspeita, o conteúdo de suas produções acadêmicas aos enunciados úteis ao sistema mantenedor das grandes finanças. Da mesma forma, no relativo aos conteúdos, Belluzzo e Galípolo atacam as teorias assentadas nas hipóteses de que os mercados são instituições intrinsecamente perfeitas como mecanismo de alocação eficiente dos recursos econômicos. Assim, livres de intervenção, os mercados desencadeariam mecanismos de ajustes, que conduziriam automaticamente ao equilíbrio de longo prazo. Dotada dessa presumida racionalidade, a realidade observada nos mercados econômicos se apresenta como infensa à apreciações críticas, visto que é o melhor que se pode ter.
Noções como a de orçamento ciclicamente ajustado limitam a disponibilidade de políticas viáveis direcionadas à comunidade. Os gestores públicos evitam a responsabilidade política por suas escolhas, uma vez que suas opções seriam impostas pelo orçamento. Essas restrições, contudo, usualmente afetam as políticas sociais, porém não se aplicam quando do apoio a bancos. Os impostos e as tarifas públicas crescem, mas apesar disso os serviços públicos são reduzidos. Os autores discordam da frequente comparação do orçamento público à economia doméstica, empregada como forma de fundamentar o entendimento de impor limites aos gastos do governo, uma vez que uma diferença crucial é que a casa não coleta impostos e não imprime dinheiro. A democracia é sempre limitada quando informação e poder são distribuídos de forma desigual, comentam.
A teoria econômica moderna apresenta-se como porta voz oficial da racionalidade liberalizante, afirmam. Nesse particular, confrontam pontos de vista acríticos veiculados pelos noticiários econômicos, os quais propagam a automática relação entre poupança e investimento. Este entendimento está na base da concepção de que a cura mais rápida para a depressão econômica se daria pela via do aumento da poupança, que automaticamente se traduziria em investimento privado. Criticam economistas liberais que defendem que a queda do consumo no presente se traduzirá em um movimento automático de aumento da poupança, que conduzirá a um incremento do investimento futuro. Defendem os autores que, na verdade, os agentes econômicos estão mais propensos a ampliar a capacidade produtiva de suas empresas, ou seja, realizar investimentos quando o consumo está em alta e não quando está em baixa no presente.
No trato do tema do investimento, salientam o papel central que a moeda desempenha nas economias contemporâneas, e que o desejo de se apropriar de renda e acumular riqueza na forma monetária é a condição que predomina na economia real. Afirmam que a posse do dinheiro está no centro da análise da produção, uma vez que o sentido da produção social em uma economia capitalista é a acumulação de riqueza monetária por parte dos empresários, e não a maximização do produto material mediante a utilização de recursos escassos.
A economia brasileira também é foco da análise dos autores. Dirigem sua atenção ao enorme espaço nos noticiários destinados a tratar da elevação da taxa de juros básicos da economia como forma de contenção do processo inflacionário. Fazem reparos ao vínculo direto estabelecido, e argumentam que, em contextos variados que citam, não foi exatamente o excesso de demanda o fator causador da inflação. As posições críticas ao ponto de vista predominante raramente aparecem nos cadernos de economia, apesar de simples e presentes nos discursos de vários economistas relevantes.
A influência das finanças também aparece no trato de questões como a relação entre câmbio e Indústria, que é um aspecto importante, visto que a combinação de juros elevados e câmbio apreciado tem inviabilizado a indústria doméstica.
Rebatem a crítica de que o Brasil teria uma carga tributária excessiva, por conta de um estado social gastador. A economia exibiu superávits primários por longos 16 anos entre 1998 e 2013 e nesse período a dívida líquida do setor público aumentou de forma considerável. Embora admitam que é impossível sustentar indefinidamente uma crescente participação do estado na economia, pouco se fala do peso das elevadas despesas com juros e de que muitas vezes o ajuste fiscal é realizado sobre a contenção de gastos com investimentos e educação.
Tratam também, com detalhes, da comentada relação dívida/PIB empregada como avaliação da condução das finanças públicas e de como a dinâmica dos juros a afeta. A crise reduz a arrecadação do governo fazendo com que o resultado primário aumente a dívida ao invés de colaborar com sua amortização, piorando a relação.
No capítulo final, denominado o prejuízo dos obedientes, os autores leem o tempo presente pela lente dos ideais do Iluminismo e da Revolução Francesa, e temem pela instauração de processos anti-civilizatórios permanentes. São imensas as contradições entre as reais possibilidades que o capitalismo proporciona e as situações negativas enfrentadas.
Criticamente observam que não raramente avanços tecnológicos e ganhos de produtividade andam juntos com a intensificação do ritmo de trabalho, há também o desemprego e a enorme força que as corporações internacionalizadas exercem sobre a massa de trabalhadores, nivelando salários por baixo. As grandes fusões e aquisições de empresas aumentam seu poder de mercado e se amplia o fosso entre o desempenho dos sistemas globalizados e os estruturados em bases locais. Há uma fantástica concentração de renda em mãos de diretores executivos das grandes empresas norte-americanas. Como fato geral, avança o processo de concentração da renda e da riqueza em todo o mundo, elevando a insegurança das pessoas. A renda das famílias da classe média aumenta lentamente, mas o número de horas trabalhadas também cresce.
No turbilhão, os estados e suas funções legislativas e jurisdicionais perdem força frente às grandes empresas e a força dos trabalhadores cai. O endividamento dos estados socializa prejuízos e privatiza a riqueza pública. Os sistemas tributários têm se tornado cada vez menos progressivos desde o início da década de 80, e os de proteção social sofrem permanentes ataques. Os meios de comunicação social se aliam plenamente ao ponto de vista das finanças globalizadas.
Finalizando, os autores expressam a desconfiança de que o mundo não padeça apenas o sofrimento de uma crise periódica do capitalismo, e sim “as dores de um desarranjo nas práticas e princípios que sustentam a vida civilizada”.
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