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Desconstruir o poder do dinheiro

LIVRO: Luiz Gonzaga Belluzzo e Nathan Caixeta enfrentam os mitos disseminados pelo pensamento econômico dominante

Resenha escrita por André Luiz Passos Santos, e publicada na revista CartaCapital.

Em seu mais recente livro, o professor Luiz Gonzaga Belluzzo, de longa carreira acadêmica e de assessoramento técnico, formador de gerações de economistas e autor de dezenas de livros e artigos, une-se pela segunda vez ao brilhante jovem economista Nathan Caixeta para nos brindar com uma instigante crítica do pensamento econômico hegemônico de nossos dias.

Avenças e Desavenças da Economia trata, em última análise, de desconstruir conceitos que são intuitivos, simplificados e, portanto, de fácil assimilação pelo senso comum. Uso um exemplo para ilustrar o que digo: observamos diariamente o Sol nascer a Leste, migrar pelo céu e se pôr a Oeste. A conclusão a que chegaram nossos antepassados, sem mais instrumentos de observação que o olho nu, é tão óbvia quanto incorreta: o Sol gira em torno da Terra. Assim podemos interpretar os conceitos utilizados pelos economistas mainstream, que repetem mantras simplificadores ao comparar a economia de uma nação à de um lar (não se pode gastar mais do que se arrecada); de que as finanças públicas são como as antigas arcas do tesouro (alimentando o mito de que “não há dinheiro”); e, ainda por cima, os misturam a conceitos morais, como a virtude da austeridade em oposição ao pecado da “gastança”; e da supremacia do mercado sobre o Estado. São fórmulas falseadoras da realidade.

Tais conceitos, utilizados para explicar fenômenos complexos da vida social, são apresentados de forma simples e elegante, mas conduzem a uma conclusão completamente errada, parafraseando H.L. Mencken.

Eles desprezam o que desde Keynes conhecemos como “circuito gasto-renda”: os gastos de um são a renda do outro, alimentando um ciclo de circulação da riqueza que sustenta o crescimento econômico. Ou seja, quando alguns deixam de gastar, os outros ganharão menos e, em consequência, também reduzirão seus gastos, reforçando a recessão. Portanto, aquilo que é bom para um indivíduo, família ou empresa não é necessariamente bom para o conjunto da sociedade. Para além de desconsiderarem que os investimentos autônomos – aqueles que o Estado realiza sem calcular retornos financeiros de curto prazo – têm o condão de injetar demanda na economia, evitando a recessão.

A conclusão – nada óbvia – é que o Estado tem um importante papel regulador na economia. Gastando de forma eficaz, o Estado ativa a economia e, de quebra, reforça o próprio caixa.

Desde Keynes, discutimos que não é a poupança prévia que permite o investimento. O Estado tem a propriedade de criar moeda (assim como os bancos, seus prepostos), seja emitindo papel-moeda, moeda escritural ou títulos de dívida. Outra coisa não foi o processo de “facilitação monetária” que custou trilhões de dólares aos Estados nacionais na crise do subprime de 2007–2008. Porém, quando se trata de salvar os circuitos de acumulação privada de riqueza da iminente débacle, não se percebe qualquer estridência dos trombones midiáticos a serviço do mercado contra a “gastança” e o aumento do endividamento.

Procuram também desinformar sobre o papel da dívida pública e dos juros na formação da riqueza privada. É preciso compreender que a dívida pública é uma peça fundamental no funcionamento da engrenagem que faz circular ou se abrigar dos perigos – como pedra de toque do sistema financeiro – a riqueza acumulada pelos agentes privados.

O conceito de bem comum é convenientemente borrado, para esconder aquilo que é essencial. Um truque de prestidigitação trata de esconder do público o quanto os juros são responsáveis pelo aumento da dívida pública, permitindo aos mesmos prestidigitadores atribuir ao Estado “ineficiente” (portanto, a toda sociedade) a expiação dos pecados privados.

Belluzzo e Caixeta passeiam com desenvoltura pelos economistas, dos clássicos aos modernos, assim como pela filosofia e por outros campos do pensamento social, da conjuntura, do cinema e da literatura, para discutir como a sociedade funciona de forma complexa e multifacetada – ao contrário dos economistas liberais neoclássicos, que desejam atribuir à economia ares de ciência exata.

Olhar multifacetado: Belluzzo, além de lidar com conceitos clássicos e modernos da economia, passeia pela filosofia e por outros campos das ciências humanas

Os economistas mainstream aferram-se a modelos de equilíbrio geral, informados por elegantes equações matemáticas e recheados de certezas que se esboroam ao primeiro encontrão com a realidade. Continuam atribuindo imaginários ratings AAA a conceitos que a força da realidade refuta a cada crise. E as crises, já ensinaram os clássicos, são cíclicas e inerentes ao próprio funcionamento da economia de mercado. Logo, são inevitáveis.

A financeirização global colocada pela destruição dos modelos keynesianos de regulação agrava o quadro. A finança perpassa e controla quase tudo, da produção à circulação, passando pelos circuitos de proteção da riqueza, e tornou-se tão poderosa que já não faz sentido falar, exceto talvez com finalidade didática, de contradição entre economia financeira e economia real.

Resisto a utilizar o termo – usado por alguns analistas – de metástase, porque induz incorretamente a um comportamento anômalo de um organismo qualquer. A financeirização é uma consequência lógica e necessária do desenvolvimento do capitalismo, inerente ao seu funcionamento, como já previra Karl Marx e discutem os autores.

O poder do dinheiro acumulado nas mãos de pouquíssimos há muito desafia o poder dos Estados nacionais – mesmo os mais desenvolvidos – e da sociedade organizada. O dinheiro adquiriu posições privilegiadas na mídia e na academia, que protegem seus interesses.

Nada que desafie a visão prevalente consegue prosperar na mídia hegemônica, assim como os acadêmicos divergentes não conseguem, senão como exceções à regra, ocupar postos importantes nas grandes universidades do mundo desenvolvido, nos governos ou nos organismos internacionais.

Os autores travam essa luta, neste livro e em seu dia a dia. Oxalá a bolha de proteção midiática e acadêmica seja furada e mais pessoas passem a ver que, sim, há alternativas.

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