O governo de Bolsonaro acelera a deterioração da democracia, usando o "lawfare" como instrumento para favorecer interesses capitalistas
Bolsonaro é a figura ideal para a destruição do que sobrou no país – por Gustavo Freire Barbosa, em 30 de janeiro de 2020.
O Varietes of Democracy (V-dem), instituto ligado à Universidade de Gotemburgo, na Suécia, elabora relatórios anuais sobre a qualidade da democracia no mundo. Em seu último estudo, alertou para a intensa deterioração do regime democrático no Brasil após a chegada de Bolsonaro ao poder. Tendo como referência o golpe de 2016 contra Dilma Rousseff, a democracia brasileira perdeu pontos o suficiente para deixar de ser considerada uma democracia liberal, passando a se enquadrar em um regime apenas de natureza eleitoral.
Embora o Brasil não seja considerado uma ditadura, sua guinada à autocracia é considerada pelo instituto como uma das mais rápidas nos últimos anos. A hostilidade de Bolsonaro aos críticos de seu governo foi um dos parâmetros para suas conclusões, que levaram em conta, dentre outras coisas, o boicote promovido contra o jornal Folha de S. Paulo, a perseguição a servidores públicos que contrariaram o governo, a sugestão de que o jornalista Glenn Greenwald poderia ser preso em função da série Vaza Jato e o já conhecido pendor por ditadores como Pinochet e Stroessner, alvos de incontidos elogios por parte do presidente.
"O fato é que Bolsonaro não leva a democracia a sério – e é exatamente por isso que ele é a pessoa certa para ocupar a Presidência da República na atual quadra histórica, onde direitos e liberdades democráticas deixaram de ser toleradas pela acumulação capitalista."
Há um estágio crônico da democracia liberal em que o reconhecimento de direitos e o incremento da participação popular nos processos de decisão se tornam um inconveniente para a sua principal finalidade, qual seja, a de garantir a liberdade e a igualdade que tornam possíveis a circulação de mercadorias e a apropriação privada da riqueza coletivamente produzida. Medidas como golpes parlamentares, a emenda constitucional do teto de gastos (que só da saúde, por exemplo, tirará mais de 700 bilhões de reais durante sua vigência) e a prisão de lideranças que não dançam segundo essa música mostram como mecanismos jurídicos têm um papel fundamental nesse esquema. É aí que a prática do lawfare, ou o uso da lei para promover perseguições políticas, ganha relevância.
Em artigo sobre o livro “Lawfare: uma introdução”, de Cristiano Zanin, Valeska Teixeira Zanin Martins e Rafael Valim, o professor Alysson Mascaro traça a linha que separa as abordagens materialista e idealista não apenas no que diz respeito ao fenômeno do lawfare em si, mas aos atalhos autoritários à ordem democrática e constitucional. Enquanto a utopia liberal, apoltronada em seus idealismos, os enxerga como um soluço, acreditando haver uma deturpação do direito e da democracia, o olhar materialista os vê como inerentes aos padrões e formas instituídas pela sociabilidade capitalista; a graxa que torna possível o movimento das engrenagens que fazem com que pouco mais de dois mil bilionários tenham mais riqueza que 4,6 bilhões de pessoas, ou quase 60% da população mundial, segundo o último relatório da Oxfam.
Deve-se encarar essa obscena concentração como uma espécie de meta, sendo as leis e o direito o instrumental que serve para assegurar que seja atingida, embora no papel suas finalidades sejam outras. Quando a concretização destas finalidades, por contingências conjunturais, se sobrepõe politicamente aos objetivos não declarados do aparato jurídico, entra em cena o porrete, metafórico ou literal, para lembrar a quem realmente serve.
O lawfare, portanto, não pode ser considerado produto apenas de uma aplicação míope do direito; tampouco de governantes, empresários, juristas e jornalistas mal intencionados, aponta Mascaro, sendo, sim, a margem extrema, porém sempre possível, “do rio de uma sociedade de exploração, opressão, concorrência e disputa”. Tropeços antidemocráticos não são frutos de psicopatias, mas, como demonstra no livro “Estado e Forma Política”, de institutos sociais e políticos que nascem da produção capitalista, da exploração do trabalho assalariado e da tendente conversão de todas as coisas e pessoas em mercadoria.
O ponto é que não existe capitalismo sem uma estrutura jurídica que garanta que mercadorias rodem tranquilamente por aí. Por isso é preciso ter em mente o fato das relações mercantis gerarem uma forma política que se apresenta separada das forças produtivas, assegurando a reprodução capitalista na condição de garantidora. Esta forma, representada pelo Estado contemporâneo, não surge do nada. Acreditar que surgiu antes do modo de produção capitalista é cair na armadilha que enxerga os postulados do liberalismo como leis universais e eternas, brotadas do chão e nascidas de reações químicas.
No último dia 15 de janeiro completaram-se 101 anos do assassinato da teórica e militante marxista Rosa Luxemburgo. Em suas conhecidas discussões com Eduard Bernstein retratadas em “Reforma ou Revolução?”, Rosa conclui que se o Estado se coloca como caudatário dos interesses de desenvolvimento social, isso só é possível na medida em que estes interesses coincidem, de maneira geral, com os da classe dominante. O exemplo que traz é o da legislação operária feita tanto no interesse da classe capitalista como da sociedade, uma harmonia que dura até o ponto em que passa a bater de frente com os níveis de acumulação tidos como ideais pela burguesia.
Se Vargas instituiu a CLT com a finalidade de, como fez questão de deixar claro ao próprio empresariado, amortecer as tensões da relação entre capital e trabalho e assim evitar uma revolução, hoje esta mesma CLT se tornou uma barreira para margens de lucros possíveis somente via a pilhagem de fundos públicos e a uberização das condições de trabalho. É nessas circunstâncias que foram aprovadas as reformas trabalhista e da Previdência. É onde também se anuncia uma reforma tributária que tende a seguir os mesmos rumos de isenção dos mais ricos e privilégios a bancos, cujos lucros vêm batendo sucessivos recordes mesmo em tempos de crise.
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