Ao libertar mais de 500 escravizados, Luiz Gama obteve 'feito mais impressionante do abolicionismo'
Entrevista feita por Sérgio Rodas, e publicada no portal do Conjur, no dia 03 de setembrode 2024. Confira aqui.
Na luta contra a escravidão, o advogado, escritor e jornalista Luiz Gama (1830-1882) criou e potencializou dezenas de argumentos, em todas as áreas do Direito. Dessa forma, ele obteve a libertação de mais de 500 pessoas por meio de ações judiciais e administrativas, o “feito mais impressionante do abolicionismo no mundo”, segundo Bruno Rodrigues de Lima, doutor em História do Direito pela Universidade de Frankfurt (Alemanha), pós-doutorando no Max-Planck-Institut e autor do livro Luiz Gama contra o Império (Contracorrente).
Decorrente da tese de doutorado de Lima — que recebeu o prêmio Walter Kolb de melhor trabalho da Universidade de Frankfurt e a medalha Otto Hahn de destaque científico da Sociedade Max Planck —, a obra é uma biografia jurídica de Gama. Ou seja, a vida dele é contada a partir de sua produção na área — petições e artigos sobre o Direito e a Justiça.
Filho de pai branco e mãe negra, Luiz Gama nasceu livre em Salvador, mas foi vendido como escravizado pelo pai para pagar suas dívidas — o que configurava crime na época. Em São Paulo, obteve a liberdade e passou a trabalhar na polícia com Francisco Maria Furtado de Mendonça, professor do Largo São Francisco. Gama tentou cursar Direito na instituição, mas sofreu rejeição dos demais alunos, em sua grande parte oriundos da elite política e econômica da época. Porém, ele passou a estudar por conta própria. E, nas funções de copista, escrevente e amanuense, aprendeu como funcionava a burocracia administrativa e judiciária. Depois de um tempo, obteve autorização de um juiz para advogar e passou a lutar pela libertação de escravizados nos tribunais.
E ele foi um “excelente advogado”, afirmou Lima em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico. Gama criou teses em diversas áreas do Direito para libertar negros. Um dos argumentos que mais usou foi o de que, se o tráfico transatlântico era ilegal — como estabelecia a Lei Feijó, de 1831 —, as vítimas tinham direito à liberdade.
A contribuição teórica mais importante e revolucionária de Gama, segundo o pesquisador, foi a de que um escravizado não poderia ser punido por matar o senhor. Ao agir dessa forma, ele estava cumprindo uma prescrição de Direito Natural e um dever moral, pois não há justificativa para suprimir a liberdade de uma pessoa de tal maneira.
“É a contribuição mais radical (de Luiz Gama) porque significava que não poderia haver condescendência alguma com a escravidão. Significava que a escravidão não gerava título de propriedade legítimo, que a pessoa subjugada pela escravidão tinha a justificativa moral, ética, principiológica e jurídica de se insurgir contra o cativeiro”, analisou Lima.
Precursor do movimento abolicionista no Brasil, Gama foi responsável pela “maior ação de liberdade da história das Américas”, conforme Lima. Trata-se do “caso Neto”, uma ação coletiva pela qual o advogado conseguiu a libertação de 217 escravizados. Ele também lutou para levar as discussões jurídicas para a esfera pública, expondo as disputas judiciais — então restritas aos fóruns — em jornais. Embora Gama tenha morrido seis anos antes do fim da escravidão e tenha tido seu impacto distorcido pela historiografia, sua contribuição para a abolição é “indelével”, ressaltou o pesquisador.
O livro Direito 1870 – 1875 / Luiz Gama (Hedra), de Bruno Rodrigues de Lima, foi premiado com o primeiro lugar na primeira edição do Jabuti Acadêmico, na categoria Direito. O pesquisador organiza a publicação das obras completas do advogado e escritor.
ConJur — Por que a escolha de contar a vida de Luiz Gama a partir de seus documentos jurídicos?
Bruno Rodrigues de Lima — O livro originou-se de uma tese de doutorado que eu defendi na faculdade de Direito. Eu tenho uma visão de que Luiz Gama passou à posteridade não como poeta, mas como advogado. Desde que ouvi a história dele pela primeira vez, o que mais me chamou a atenção foi a luta jurídica dele, a luta perante os tribunais. Como um homem negro, que tinha sido escravizado, reconquistou sua própria liberdade, escolheu a tribuna do Direito, mesmo sem ter estudado na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, e exerceu a advocacia? Essa foi uma pergunta que me perseguiu por muitos anos. E a resposta não estava na literatura.
A vida de Luiz Gama é uma vida forjada no Direito. Assim, eu tinha de achar a maior quantidade de documentos jurídicos para contar essa história. Nesse percurso, eu vi que todos os advogados, juízes, teóricos do Direito mais importantes tinham uma biografia. Não são biografias que falam da família, das redes de contato político e empresarial, por exemplo, mas que abordam a relação dessas pessoas com o mundo do Direito. Há biografias jurídicas de Tobias Barreto, Joaquim Nabuco, José de Alencar, Teixeira de Freitas. Mas não havia uma de Luiz Gama, porque nunca reconheceram que a contribuição que ele deu ao Direito era digna de uma biografia jurídica.
A minha hipótese é que Luiz Gama se dedicou ao Direito de tal maneira que Direito e Luiz Gama passaram a ser uma coisa só, uma só ideia. Então, a maneira que eu encontrei para estudar essa figura histórica foi o Direito, foi estudar o Direito. E, por meio dessa figura histórica, é possível compreender o Direito do século 19. São asas de um mesmo pássaro, que se coordenam para executar o mesmo movimento.
ConJur — Luiz Gama nasceu livre, mas foi vendido como escravizado pelo pai, o que era um crime na época. Como esse ponto virou um de seus principais argumentos em ações pela libertação de escravizados?
Bruno Rodrigues de Lima — Luiz Gama conhecia muito bem a própria história, os detalhes da própria tragédia. O trauma que ele enfrentou foi enorme. Ainda assim, ele não fechou os olhos para o trauma, revisitou os momentos de sua escravização e compreendeu que foi uma escravização ilegal, criminosa, feita com base em um documento fraudado. Essa conexão entre a forja do documento e a chancela do documento fraudado por diversas autoridades, tornando-o legal e válido perante outras autoridades, gerou um insight fabulosíssimo em Gama.
Assim, ele usou esse evento de 10 de novembro de 1840 como um raio inapagável, que lhe fez perceber que era um momento fundante na história de todos os outros africanos que entraram no Brasil no período do contrabando. Todos eles tinham um marco temporal que inapelavelmente provava a ilegalidade do cativeiro. Gama identificou que o que ele vivenciou não era uma exceção, pelo contrário. Ele percebeu que a fraude de um documento, chancelada posteriormente por outras autoridades e instâncias, era o ponto decisivo para desbaratar uma cadeia de ilegalidades. E ele passou a atuar em muitos casos, sempre perguntando quando a pessoa havia sido escravizada. Com os testemunhos, Gama construía um argumento provando a ilegalidade do cativeiro.
ConJur — Por que o fato de a escravidão brasileira ser instituída na cúpula do Estado nacional a diferenciava da prática em outros lugares, como nos Estados Unidos?
Bruno Rodrigues de Lima — Essa é uma história fundamental para entendermos a cidadania hoje. Qual foi o pacto constitucional de 1824? Quem representava os cidadãos do Brasil na Assembleia Constituinte, depois na Assembleia Geral Legislativa? O Brasil, na década de 1820, sabia muito bem o que tinha acontecido nos EUA, sabia da divisão irreconciliável de norte e sul em matéria de sistema de trabalho escravista. Sabia o que tinha acontecido na metrópole espanhola e nas colônias espanholas, que tinha resultado na fragmentação territorial de todos os vizinhos do Brasil. Existia um pacto na cúpula do Estado para a escravidão não aparecer no texto constitucional. Criou-se um sistema em que em todo o território nacional havia gente escravizada, diferentemente dos EUA, do Império Espanhol, do Império Francês.
Criou-se uma sociedade escravista de soberania plena. Porque nos EUA, no Império Espanhol e no Império Francês, a escravidão não estava na cúpula do Estado. Havia discussões, não havia um consenso se a escravidão era ou não política do Estado. Então, permitiram que as regiões decidissem a questão até futuramente o Estado nacional ter uma posição definida. Os EUA só resolveram essa questão com uma guerra. A mesma coisa aconteceu com o Império Espanhol. São guerras que decidiram a questão tanto do poder político quanto de qual é a economia-base de uma sociedade. O Brasil decidiu pela escravidão, muito embora isso não esteja explícito no pacto formalizado nos textos legais, inclusive na Constituição de 1824.
ConJur — Como Luiz Gama se tornou advogado sem ter cursado Direito?
Bruno Rodrigues de Lima — Luiz Gama conhecia muito bem a multinormatividade da escravidão. Conhecia muito bem os diversos diplomas, normas, alvarás, avisos, tratados, o repertório das normatividades eclesiásticas, judiciárias, administrativas sobre o assunto. Então, Luiz Gama explora um precedente administrativo, das Ordenações Filipinas, das normas portuguesas, que facultavam a um juiz de uma dada jurisdição conferir os poderes para alguém advogar, independentemente de ter formação jurídica. Na época, não havia Ordem dos Advogados do Brasil, não havia um órgão com competência para disciplinar quem era ou quem não era apto ao exercício da função advocatícia.
Depois de 19 anos de atuação como escrevente, escrivão e amanuense da Secretaria de Polícia, Luiz Gama conhecia muito bem a máquina administrativa e a máquina judiciária. Ele peticionou a um juiz pedindo o direito de advogar. E esse juiz, na antevéspera de Natal do ano de 1869, concedeu o direito de advogar a Gama, que havia provado ter notório saber jurídico. Além disso, o juiz sabia da necessidade de advogados no foro para representar uma fila de clientes.
Gama conquistou o direito de advogar devido a um tremendo conhecimento do funcionamento da máquina judiciária e a um timing político fabuloso, porque ele peticionou na antevéspera de Natal, para um juiz interino, que acabou por expedir a licença para ele advogar. E Luiz Gama teve muita astúcia para validar essa licença em outras jurisdições. A partir desse instante, ele começou a assinar como advogado e a ser reconhecido como advogado.
ConJur — Como as atividades de copista, escrevente e amanuense prepararam Luiz Gama para a advocacia?
Bruno Rodrigues de Lima — Essas atividades são formadoras para Gama. Por exemplo, a atividade de copista exigia que alguém copiasse documentos dos mais variados, para dar andamento a processos. Essa atividade de copista permitia que Gama lesse diversos documentos, inclusive sigilosos. Ele foi vendo de perto como um juiz decidia uma matéria, como um advogado peticionava, como um policial mandava fechar um comércio, como a Câmara dos Vereadores discutia uma lei. O copista se restringia a copiar documentos. Já o escrevente podia, por exemplo, receber uma ordem ditada e transformá-la em uma peça escrita. Mas o escrevente estava restrito às ordens da autoridade. Já o escrivão tinha uma margem maior de criação. E o amanuense estava em uma posição superior, poderia dar ordens para outros escrivães e escreventes.
Ao longo de 19 anos, Gama esteve em cada uma dessas funções. E ele operava a máquina administrativa junto a uma figura-chave no seu processo formativo, que é o chefe de polícia e catedrático de Direito Administrativo Francisco Maria Furtado de Mendonça. Então Gama conheceu todas as etapas da produção de um ato normativo. E esse conhecimento interno nenhuma faculdade ensinava.
ConJur — Como o registro das cartas de emancipação de africanos livres na Secretaria de Polícia de São Paulo, por Luiz Gama, ajudou a normatizar as expectativas de direitos de africanos trazidos ilegalmente como escravizados para o Brasil?
Bruno Rodrigues de Lima — O registro das cartas era de um tempo muito violento. O chefe de polícia falava: “Nós vamos registrar os africanos ilegalmente contrabandeados. Nós vamos registrar as cartas de emancipação”. Isso era dar força normativa a um decreto que teve baixíssima eficácia durante os anos de sua existência. Então, o chefe de polícia de São Paulo, assistido por alguém como Gama, decidia a questão. No caso do livro dos africanos livres em São Paulo, Luiz Gama escreveu quase tudo, eu identifiquei ao analisar os documentos. É claro que tem a vontade política do chefe de polícia, mas se não fosse a mobilização interna de Gama, um livro como esse jamais existiria. Ou, se existisse, existiria de modo esvaziado.
O decreto de reconhecimento de africanos livres como titulares de direitos foi algo muito difícil de ser validado nas províncias, especialmente naquelas onde os interesses da escravidão eram muito poderosos, como São Paulo. Gama entendia que o tráfico transatlântico de gente escravizada da África para o Brasil, que vitimou mais de um milhão de pessoas, era ilegal. E, uma vez ilegal, gerava direitos para as vítimas dessa ilegalidade. Não bastava reconhecer a ilegalidade do tráfico transatlântico, que é o maior crime contra a humanidade no século 19, promovido pelo Estado brasileiro. Gama entendia que o tráfico sendo ilegal, mais do que imoral, sendo um crime, gerava direitos para as vítimas, como o de liberdade. E ninguém ousaria discutir essa ilegalidade, porque havia diplomas e mais diplomas legais nesse sentido — como lei nacional e tratado internacional.
ConJur — Quais eram os principais argumentos usados por Gama para pedir a liberdade de escravizados?
Bruno Rodrigues de Lima — Um era esse que eu mencionei, do tráfico transatlântico como vinculante de direitos de liberdade, que tinha potencial de atingir mais de um milhão de pessoas. É uma doutrina revolucionária, com a qual ele chega a obter vitórias na jurisdição de Santos (SP).
Gama usava muitos argumentos diferentes, inclusive a palavra do homem branco. Se um homem branco dissesse que conferia liberdade a alguém em um testamento e depois quisesse mudar de ideia, ele não poderia, argumentava Gama. Porque uma vez registrado que alguém teria a liberdade restituída, isso era irrevogável e irretratável. Então ele usava a palavra do senhor como geradora de direitos de liberdade, porque a liberdade não pode retroagir, tamanha sua importância. E Gama consegue ganhar muitos casos baseado nesse argumento.
No livro, mostro como Gama construiu um “manual jurídico abolicionista”. Isso deu muito trabalho, porque envolvia conhecer por dentro a operação da máquina burocrática administrativa, mas também conhecer os repertórios normativos de liberdade. E o manual passava pelo processo civil, pelo Direito Administrativo, pelo Direito das Sucessões e, no limite, pelo Direito Penal. Se o escravo matasse o senhor, ele cumpria uma prescrição inevitável de Direito Natural, dizia Gama. Segundo ele, o impulso pela liberdade era tamanho que, na verdade, a pessoa se insurgia contra um crime inicial (a escravidão) e, com base no Direito Natural, o júri tinha o dever de restituir a liberdade àquela pessoa, uma vez que o que ela cometeu não foi um crime, mas uma reação ao crime anteriormente cometido contra ela.
ConJur — Como Gama construiu essa tese de que o escravizado que matasse o seu senhor agia em legítima defesa? E por que essa é a contribuição teórica mais importante de sua carreira?
Bruno Rodrigues de Lima — É a contribuição mais radical porque significa que não poderia haver condescendência alguma com a escravidão. Significa que a escravidão não gerava título de propriedade legítimo, que a pessoa subjugada pela escravidão tinha a justificativa moral, ética, principiológica e jurídica de se insurgir contra o cativeiro. Segundo Gama, não se tratava apenas de crime justificado, como o Código Criminal do Império chamava as excludentes de ilicitude. Ao matar o senhor, o escravizado cumpria — esse é o verbo que Gama usava — uma prescrição de Direito Natural. Logo, ele tem a exclusão da ilicitude. Nem crime é, logo não há punição. E mais: como se trata de uma prescrição de Direito Natural, o escravizado tinha o dever moral de agir daquele jeito. Isso significa que até o crime contra a vida, em matéria de escravidão, era moralmente legítimo.
Na construção desse argumento, Gama explorava diversos casos de pessoas brancas que cometiam condutas que configurariam crimes, mas eram amparadas pela excludente de ilicitude. Ele venceu júris argumentando que o escravizado cumpria uma prescrição de Direito Natural ao matar o senhor, que tinha o dever de agir daquele modo; logo, não havia punição. Isso é revolucionário. O que Gama estava dizendo era o seguinte: a escravidão é tão corrupta, é tão injustificável, que até o crime contra a vida é um imperativo moral.
Gama tem muitas contribuições importantes, mas essa é a mais radical porque vai no limite do Direito, que é um crime contra a vida. Mas ele explorou dezenas de argumentos, em todas as disciplinas do Direito, para alargar os caminhos da liberdade dentro do Judiciário. Fazendo assim, ele chegou ao feito mais impressionante do abolicionismo no mundo — a libertação de mais de 500 pessoas por meio de ações judiciais e administrativas, por meio do Direito.
ConJur — Por que o ‘caso Neto’ é considerado o mais importante da carreira de Gama?
Bruno Rodrigues de Lima — Porque é uma ação coletiva pela qual Gama liberta 217 pessoas de uma só vez. Ele vence na primeira e na segunda instâncias e negocia muito habilmente para que a parte contrária, liderada por José Bonifácio Moço, professor do Largo de São Francisco, se resignasse e parasse de apresentar recursos protelatórios e desnecessários para o fim do processo. É a maior ação de liberdade da história das Américas, um feito sem precedentes. E conduzida por um advogado negro, na comarca de Santos (SP), entre 1870 e 1872.
O caso é importante pelo resultado, não pela radicalidade do argumento. O argumento é até conservador. Gama usou a palavra do testador, o comando normativo da expressão “declaro livre” como gerador de efeitos de liberdade. E ele conseguiu com que isso fosse validado por um juiz, depois por um segundo juiz e depois por desembargadores no Tribunal da Relação, o equivalente ao Tribunal de Justiça de hoje.
ConJur — Como foi a atuação abolicionista de Gama fora do Direito? E por que ele decidiu construir o abolicionismo por dentro do Direito, e o Direito por dentro do abolicionismo?
Bruno Rodrigues de Lima — Luiz Gama era poeta. É um dos primeiros poetas negros do Brasil. Publicou um livro em 1859. E aprendeu a produzir, a atuar em todas as etapas. Do mesmo modo que ele atuou em todas as etapas da produção de um ato normativo na Secretaria de Polícia, ele atuou em todas as etapas da produção de um jornal. Ele era homem da imprensa, alguém que conhecia todas as posições de uma tipografia. Ele inventou a imprensa ilustrada em São Paulo, experimentou diversas técnicas. Foi jornalista, escritor, dono de dois jornais. Nessa posição, respondeu a alguns processos e teve seus jornais atacados pela polícia e por milícias.
O abolicionismo — nos EUA, na Inglaterra, em Cuba e na Colômbia, por exemplo — sempre usava a imprensa como tribuna de excelência para convencer o público e defender ideias. Gama sabia que isso era importantíssimo, mas sabia que não bastava no caso do Brasil. Por mais que ele fundasse jornais e fosse um dos homens mais lidos de seu tempo, ele sabia que só a tribuna da imprensa não era suficiente em um país continental, com sérios óbices à circulação de ideias. Gama sabia que precisava de mais, que precisava levar o discurso abolicionista da esfera pública para o mundo da produção do Direito, o mundo administrativo, policial e judiciário. E ele protocolou petições e publicou esses documentos, para lhes dar visibilidade. Com isso, elevou a transparência a um patamar inédito. E Gama explorava isso. Parece pouco, mas, na época, levar um julgamento, que ocorria fechado a quatro paredes, para o jornal era um escândalo.
ConJur — E, com isso, Gama pressionava o Judiciário…
Bruno Rodrigues de Lima — Sim, era uma forma de pressionar o Judiciário, educar o público e formar massa crítica. Então tinha uma dimensão educativa, outra comunicativa e uma terceira de pressionar o Judiciário para a garantia de direitos. Ou seja, Gama constrói o abolicionismo por dentro do Direito. Ao expor um juiz à crítica pública, muda-se a forma como o julgamento é processado. E direcionando o olhar da sociedade para um lugar a que ele não chegava, Gama reconfigurava o funcionamento da esfera pública.
ConJur — Como Luiz Gama retratava o meio jurídico em suas poesias e crônicas?
Bruno Rodrigues de Lima — Como poeta satírico que era, Gama usava muita acidez e veneno. Ele tinha um estilo afiado, mordaz, pungente. Tinha uma retórica inflamada e, ao mesmo tempo, transitava para uma sobriedade fria. Ele dominava estilos diferentes, da sátira e da lírica, e levou isso para o Direito, principalmente a sátira. Ele levou isso para a crítica ao Judiciário. Ninguém criticou mais o Judiciário brasileiro do que Luiz Gama, ninguém compreendeu melhor o Judiciário brasileiro do que Luiz Gama. Ler Luiz Gama é fundamental para que nós entendamos o Judiciário de hoje e o aperfeiçoemos.
Luiz Gama sabia escrever petições diferentes para tipos diferentes de julgadores e como destacá-las na imprensa, para o grande público. Se o juiz era católico, ele fazia uma fundamentação de Direito Eclesiástico. Se o juiz era maçom, usava o vocabulário do iluminismo francês para sensibilizá-lo. Se o juiz era mais técnico, restringia a sustentação a textos normativos, dando uma interpretação jurídica mais restrita ao fato. Ele modulava o estilo conforme o juízo e o tempo. E era talentosíssimo quanto ao timing. Sabia a hora de falar, a hora de pressionar, a hora de recuar, a hora de investir dobrado… Gama era um excelente advogado.
ConJur — Qual foi a influência de Gama no movimento abolicionista? E qual foi seu impacto na abolição da escravidão?
Bruno Rodrigues de Lima — Luiz Gama morreu seis anos antes da abolição da escravidão. A abolição ocorreu em 1888, Luiz Gama morreu em agosto de 1882. Ele não viu a abolição, nem a reta final da luta política abolicionista. Mas Luiz Gama foi quem começou o movimento abolicionista no Brasil. Eu provo isso no livro quando afirmo que o Jornal Democracia, lançado e chefiado por Luiz Gama, iniciou o movimento abolicionista, em 1867. Gama começou o movimento abolicionista e não parou. Não houve interrupção na luta abolicionista de 1867 a 1882, quando ele morreu. Por ser o primeiro abolicionista, ele formou a geração seguinte de abolicionistas. Luiz Gama era 19 anos mais velho do que Joaquim Nabuco e do que Rui Barbosa, por exemplo. Ele era 24 anos mais velho do que o José do Patrocínio. Tinha idade para ser pai dessas pessoas que passaram à história como os principais abolicionistas.
O que eu quero dizer é que Gama começou o abolicionismo e foi quem o radicalizou. A contribuição dele é indelével, embora a historiografia tentasse apagá-la, tentasse embranquecer o movimento. E quando eu digo historiografia, eu digo do minuto seguinte à morte de Luiz Gama. Imediatamente começaram a contar a história de Luiz Gama de um modo deturpado, com várias distorções propositais.