O texto destaca a relevância do livro "Resgatar o Brasil", abordando temas políticos, econômicos e sociais no país
Publicação original de 14 de junho de 2019, no Blog do Pedro Eloi.
Ao ler o livro de Jessé Souza, A classe média no espelho – sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade, deparei com uma citação de Maria Lúcia Fatorelli. A citação se refere a um texto seu, sob o título de “Sistema da dívida pública: entenda como você é roubado”. O texto está inserido no livro organizado por Jessé Souza e Rafael Valim, Resgatar o Brasil. Ela é a Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida. Como há muito eu queria ler algo dela, comprei o livro. O tema é explosivo. Segundo Jessé é ela o grande instrumento da corrupção brasileira e é praticada dentro do Banco Central. A corrupção denunciada pela Lava Jato, é por ele considerada como a “corrupção dos tolos”, de centavos, perto da real corrupção existente.
A força do pensamento de sete intelectuais brasileiros.
O livro é maravilhoso. Ele pensa o Brasil por inteiro, como um projeto de Nação, com inclusão social e cidadania, através de políticas públicas, para superar nossa perversa formação histórica, oriunda do sistema da escravidão, não superado. Trata fundamentalmente de política, passando necessariamente pela economia. Vários intelectuais brasileiros escreveram os textos, organizados por Jessé Souza e Rafael Valim. Ele foi editado pela Contracorrente e Boitempo em 2018.
Os textos são os seguintes, pela ordem: O engodo do combate à corrupção: ou como imbecilizar pessoas que nasceram inteligentes? De Jessé Souza; Viralatismo em marcha: golpe visa redefinir lugar do Brasil no mundo, de Gilberto Maringoni; O fim da farsa: o fluxo financeiro integrado, de Ladislau Dowbor; Sistema da dívida pública: entenda como você é roubado, de Maria Lucia Fatorelli; Imposto é coisa de pobre, de André Horta; Os grandes negócios que nasceram da cartelização da mídia, de Luis Nassif e O discurso jurídico brasileiro: Da farsa ao cinismo, de Rafael Valim. A maioria dos autores são bem conhecidos de quem, mesmo minimamente, vive informado.
O texto de Jessé retoma os seus livros, A tolice da inteligência brasileira, A elite do atraso e A classe média no espelho. Vou traçar dois pontos: Somos guiados por ideias e, como estas ideias guia entram em nossas cabeças. O texto responde a estas questões, aplicando-as para o caso brasileiro. Ele parte de um pressuposto que eu sempre defendi, de que é impossível não aprender. Ele diz isto da seguinte forma: “Como sempre, o principal desafio do conhecimento não é cognitivo. A grande maioria das pessoas pode compreender qualquer coisa dita de modo direto e sem floreios desnecessários. A grande dificuldade humana para aprender qualquer coisa nova é emocional”. O apego por quem colocou estas ideias em nossa cabeça. Me fez lembrar o texto de Kant O que é o esclarecimento? As pessoas não querem aprender. É cômodo ser de menor. Aí ele entra na formação histórica brasileira e nos apresenta a Santíssima Trindade do pensamento viralata conservador, fundado na escravidão: Sérgio Buarque de Holanda é o seu filósofo, Raimundo Faoro, o seu historiador e FHC o seu realizador. Genial, como sempre.
O texto de Gilberto Maringoni se centra no golpe midiático, jurídico e parlamentar de 2016 e, como o seu título enuncia, ele trata das consequências do golpe e da nova inserção do Brasil no mercado global. Esta inserção representa enorme atraso, fazendo o país voltar aos projetos da antiga UDN, de um país submisso e genuflexo na ordem internacional. Relembra a frase de Magalhães Pinto: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Do texto anotei uma frase inicial: “Em dois anos de golpe e quatro da Operação Lava Jato, foram destruídos ou estão em processo de desnacionalização os setores de construção civil, estaleiros, carne e derivados, energia elétrica, petróleo e indústria da aviação”. Mais claro é impossível. É apagar a memória de Vargas, como queria a terceira pessoa da nada Santa Trindade, apontada pelo Jessé. Outra meta do golpe é a destruição dos direitos garantidos na CLT e na Constituição de 1988. Em outro post eu citava os quatro pilares da frágil cidadania brasileira: a CLT, o nosso sistema educacional, mesmo com toda a sua precariedade e a questão da Seguridade Social, implantada pelo SUS e pela Previdência, na Constituição de 1988. Tudo isso está sendo desmontado. São os temas de Maringoni.
Ladislau Dowbor nos dá a mais óbvia lição de economia, ao falar de seu círculo virtuoso, citando o New Deal e o Brasil de 2003-2013, como exemplos. Este círculo virtuoso também aumenta a arrecadação dos impostos, o que permite a melhora dos salários indiretos, representados pelos serviços públicos. Com esta lição visa combater o chamado nanny state, expressão que, confesso, não conhecia. Mas conheço muito bem os seus malefícios, as políticas de austeridade. Depois passa para análises econômicas, centrando suas críticas às estratosféricas taxas de juros que inviabilizam a nossa economia. Quando Dilma diminuiu a taxa de juros, o sistema financeiro patrocinou o golpe. Como alternativa ao modelo do nanny state, apresenta os modelos da economia alemã, da China e do Canadá. Aqui os créditos chegam a ser 1200% mais caros do que nos países da OCDE...
O texto de Maria Lucia Fatorelli é praticamente uma continuidade do de Dowbor, abordando a questão da dívida pública, paga pelo Estado, e que consome praticamente a metade de todos os impostos arrecadados. A dívida pública é o “veículo do roubo”. Em meio ao seu texto aparece uma tabela em que compara a distribuição do arrecadado com uma pizza, cortada em pedaços. A pizza é desproporcionalmente cortada. A dívida pública ganha um pedação, que se destina ao improdutivo sistema financeiro. Não sobra para os serviços públicos. E como a economia se apropriou da categoria moral da palavra dívida, o seu pagamento ganha o caráter religioso de salvação. O Banco Central administra os pagamentos em nome do combate à inflação. Termina mostrando a fundamental contradição brasileira, de tanta pobreza em meio a tanta riqueza.
Com o sugestivo título de que imposto é coisa de pobre, André Horta nos mostra o nosso injusto sistema tributário, ao não aplicar um sistema de progressividade, em que os ricos pagariam mais do que os pobres. Aqui pagamos por igual. Os diferentes em riquezas pagam tributos por igual. A partir daí o texto converge com o de Dowbor, sobre o círculo virtuoso da economia, destacando que o bem-estar social é a grande base para impulsionar o crescimento econômico. Algo elementar, que a nossa elite teima em não compreender. Com o sistema tributário progressivo seria possível fazer a revolução social silenciosa, lembrando, para terminar, que os privilégios é que foram a grande causa da Revolução Francesa. E esta, nada silenciosa.
O texto de Luís Nassif, sobre a mídia brasileira, mostra a sua concentração e, ao mesmo tempo, aponta para o surgimento de novas mídias. Como é um texto datado, por óbvio, não entrou na questão que hoje faz ferver o caldeirão político, com as revelações do The Intercept. Cita que hoje o Google já é dono da segunda receita publicitária brasileira. Mas o coração do texto é a concentração, ou a cartelização da mídia, num termo mais apropriado. Todos os meios estão nas mesmas e poucas mãos. Dá um belo panorama histórico do combate à cartelização nos Estados Unidos e apresenta outra perversa característica da mídia brasileira, que é a possibilidade de um mesmo grupo atuar em todos os sistemas de mídia, quando TV, jornais, revistas, rádio e sites atuam entrelaçados. Esta atuação permite a total manipulação da Opinião Pública, criando mitos como os da Petrobras quebrada, da Eletrobras quebrada e tantos outros, como também o maior de todos, de que a corrupção é o principal dos nossos problemas. Tudo motes para a privatização.
Confesso que sou fã incondicional do autor do último texto do livro, de Rafael Valim. Ele ganhou esta sua condição por força de um único artigo seu, que eu li no livro de entrevistas do Lula, A verdade vencerá. O texto tem por título, “O caso Lula e o fracasso da Justiça brasileira”. Um jurista notável. Deixo o link. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/05/o-caso-lula-e-o-fracasso-da-justica.html Em seu texto nos apresenta uma retrospectiva histórica do Poder Judiciário, comprometido com as elites, uma classificação dos juízes e, uma ironia terrível de como ocorre a formação jurídica de quem integra o sistema Judiciário. Vou fazer um post em separado sobre esta formação, mas não resisto em apresenta a sua classificação. Com ela ele abre seu texto, antecedido de uma advertência:
“Sejamos francos, pois o momento não admite meias-palavras.
Atualmente, a comunidade jurídica brasileira está dividida em certos grupos: os que integram o sistema de Justiça e, estão às expensas do povo, cometendo arbitrariedades inomináveis; os que tentam se aproveitar das circunstâncias para obter vantagens; os que, embora compreendam o grave estado de coisas atual, preferem se calar; os que, por um grave déficit cognitivo ou por uma cegueira ideológica incurável, julgam que está tudo em ordem e que o Brasil logo extirpará o ‘lamaçal da corrupção’; e finalmente, os que, apesar do macarthismo implacável, não abdicaram do compromisso histórico de enfrentar o arbítrio, ainda que togado”.
Creio que todos perceberam que se trata de mais um livro necessário. E eu, diante de tanta burrice, hoje cultivada, fico cá comigo, tentando metabolizar esta frase do Jessé: “Como sempre, o principal desafio do conhecimento não é cognitivo. A grande maioria das pessoas pode compreender qualquer coisa dita de modo direto e sem floreios desnecessários. A grande dificuldade humana para aprender qualquer coisa nova é emocional”.