O texto fala sobre o assassinato de Marielle Franco, vereadora defensora dos direitos humanos, no Rio de Janeiro, em 2018, e as complexas investigações em torno do caso
Matéria completa originalmente publicada em Folha Piauí.
Marielle Franco esteve com Marcelo Freixo na investigação parlamentar contra os milicianos. Por nove anos, entre 2007 e 2016, a jovem negra criada no Complexo da Maré – um conjunto de dezesseis favelas onde moram 130 mil pessoas, na Zona Norte – foi assessora de Freixo. Ao mesmo tempo que cursava ciências sociais na PUC-Rio, ela coordenava na Assembleia Legislativa a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania, presidida pelo deputado. Em 2016, Marielle decidiu concorrer pela primeira vez a um cargo público. Candidatou-se a vereadora pelo PSOL e obteve a quinta maior votação na cidade – 46 mil votos, a maior parte deles oriundos da Zona Sul.
Seu mandato foi marcado pela defesa das mulheres, dos negros e das minorias, e também por duras críticas à violência policial. “Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM. […] Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”, escreveu Marielle no Twitter em 13 de março do ano passado, a respeito da morte de um rapaz na favela do Jacarezinho. Na noite do dia seguinte, ela própria seria assassinada no Centro do Rio, aos 38 anos de idade.
relógio no painel do carro marcava 21h14. Fazia menos de dez minutos que Marielle, a sua assessora, Fernanda Chaves, e o motorista Anderson Gomes haviam deixado a Casa das Pretas, na rua dos Inválidos, no Centro da cidade, depois do debate “Jovens Negras Movendo as Estruturas”, organizado pelo PSOL. “Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”, disse Marielle no encontro, citando a escritora norte-americana Audre Lorde – negra, feminista e gay, como a vereadora. “Vamos que vamos, vamos juntas ocupar tudo”, concluiu diante do público de pouco mais de vinte mulheres. Foi aplaudida, abriu o sorriso grande que lhe era característico e levantou-se, ajeitando a saia com estampas florais e a blusa azul-marinho de alças finas. Na saída, uma amiga a convidou para ir a um bar na Lapa. Marielle disse estar cansada e preferiu ir para casa, na Tijuca. Habitualmente, ela embarcava ao lado do motorista, mas naquele dia sentou-se atrás, ao lado da assessora, a bordo de um Agile branco.
Nenhum dos três percebeu, mas, assim que o Agile deixou a rua dos Inválidos, foi seguido por um Chevrolet Cobalt prata – o veículo com placas clonadas estava no local desde as sete da noite, quando Marielle chegou à Casa das Pretas para o debate. No banco traseiro do Cobalt, um homem segurava uma submetralhadora alemã HK MP5, calibre 9 milímetros, conhecida pela precisão de seus disparos.
Quando, às 21h20, o carro com a vereadora dobrou a esquina das ruas Joaquim Palhares e João Paulo I, no bairro do Estácio, ainda no Centro, o Cobalt emparelhou com o Agile a uma distância de 2 metros. Do vidro aberto do carro prata, a HK disparou treze tiros entre a porta direita traseira e o fim da lateral do Agile, exatamente no local onde estava Marielle.
Atingida por quatro balas no lado direito da cabeça – duas próximas à orelha, uma perto do olho direito e uma rente à boca –, a vereadora morreu instantaneamente. O motorista Anderson Gomes, que estava na linha de tiro, foi atingido por três balas nas costas. Soltou um gemido e largou as mãos do volante. Fernanda Chaves, a única a não ser atingida, abaixou-se rapidamente e puxou o freio de mão do veículo. Marielle estava com o corpo seguro pelo cinto de segurança, a cabeça caída para a frente, o sangue escorrendo pela nuca. Havia onze câmeras públicas de vídeo no trajeto feito pelo carro. Misteriosamente, cinco tinham sido desligadas, um ou dois dias antes dos assassinatos – uma delas, a poucos metros da cena do crime, não grava imagens e serve apenas para contar os veículos que passam pela via.
As mortes de Marielle e de Anderson indignaram os cariocas e o país. Na tarde do dia 15, cerca de 50 mil pessoas se aglomeraram em frente à Câmara Municipal para o velório, num ato que misturava dor e protesto. Houve manifestações populares em dezessete estados naquela noite. O crime foi destaque na imprensa internacional, ganhando as páginas dos jornais The New York Times, The Washington Post, The Guardian e Clarín, entre outros. “O Estado, através dos diversos órgãos competentes, deve garantir uma investigação imediata e rigorosa”, cobrou a Anistia Internacional. “Não podem restar dúvidas a respeito do contexto, motivação e autoria do assassinato de Marielle Franco.” Dois dias após o crime, a assessora Fernanda Chaves deixou o Rio de Janeiro às pressas e, em seguida, foi com a família para a Espanha. Só retornou ao Brasil quatro meses depois, em julho do ano passado. Mesmo assim, por segurança, permanece fora do Rio.
Freixo, que sempre manteve uma relação muito próxima com a vereadora, afirma que ela não recebeu nenhuma ameaça de morte, inclusive naqueles dias que precederam o assassinato. “Toda semana, religiosamente, eu tomava um café com a Marielle. Na terça-feira, 13 de março, véspera do crime, no fim do dia, eu falei com ela pelo telefone e combinamos de ir à Maré no sábado seguinte. Ela estava tranquilíssima. Não tinha a menor ideia de que sua vida corria risco.”
A segurança pública do Rio de Janeiro estava sob intervenção federal, decretada pelo então presidente Michel Temer em fevereiro, um mês antes da morte de Marielle. Nos dias seguintes ao assassinato, procuradores chegaram a aventar a hipótese de que o atentado fora um recado aos militares que comandavam a intervenção. Logo, no entanto, essa hipótese perdeu força. Quando o Exército saiu do Rio, em dezembro último, foi descartada. Ficou cada vez mais evidente que o crime era obra de milicianos – e quanto a isso não há mais dúvidas. A guerra de versões que se trava em torno do caso há doze meses envolve disputas entre milícias e seus respectivos padrinhos na política carioca. Envolve ainda disputas surdas entre a Polícia Civil, de um lado, e a Polícia Federal e o Ministério Público, de outro. Envolve, por fim, divergências entre jornalistas, sobretudo no jornal O Globo.
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