Vilma Reis, ativista, destaca a importância do feminismo negro na política brasileira e defende mais representação de mulheres negras
Vilmar Reis, 51. Nascida em Salvador, é socióloga, mestre em ciências sociais e doutoranda em Estudos Étnicos Africanos da UFBA (Universidade Federal da Bahia). Foi ouvidora-geral da Defensoria Pública da Bahia até 2019, mobilizadora da Marcha das Mulheres Negras desde 2015. Filiada ao PT desde 2007, foi pré-candidata à Prefeitura de Salvador em 2020 pelo partido. Em breve, será também escritora na Editora Contracorrente.
Para a socióloga e ativista baiana Vilma Reis, 51, expoente do feminismo negro brasileiro, em 2022 “ninguém vai ter coragem de bancar uma chapa toda de homens ou toda de brancos”. E, diante do retorno de Lula ao jogo político, avalia: “Não vai dar pro PT voltar a Brasília sem repartir o poder com as mulheres negras”.
Vilma fala de uma maré negra feminista, impulsionada pela política de cotas, que “mudou a cara da universidade pública brasileira”, e potencializada pelo fenômeno Marielle Franco, cujo assassinato completou três anos no domingo (14), sem que se saiba quem foi mandante do crime.
Ela cita os exemplos das deputadas federais Áurea Carolina (PSOL-MG) e Talíria Petrone (PSOL-RJ) e das deputadas estaduais Érica Malunguinho, em São Paulo, e Mônica Francisco, no Rio, ambas também do PSOL.
Vilma foi Ouvidora-Geral da Defensoria Pública da Bahia por dois mandatos, e se lançou pré-candidata do PT à Prefeitura de Salvador (BA) em 2020, quando foi preterida por Major Denice, derrotada nas urnas por Bruno Reis (DEM).
“Salvador tem 471 anos de história, é a cidade com mais negros no país, 85%. Nunca teve um homem negro, uma mulher negra eleitos pelo povo”, diz ela, que enxerga na esquerda tradicional um negacionismo da potência feminista e antirracista.
Vilma já foi trabalhadora doméstica e que vê nos altos índices de ocupação de mulheres negras neste tipo de atividade uma manutenção das regras da escravização no mundo contemporâneo. Para ela, a PEC das Domésticas, que regrou esse tipo de contrato de trabalho, foi um dos fatores que levou à derrubada da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, porque gerou ódio nas classes médias.
A ativista avalia que o Brasil vive um contexto de guerra às mulheres, contra o qual articula um levante feminista, com atos pelo país programados para o próximo dia 25 sob o slogan “Nem Pense em nos Matar”.
O movimento foi detonado pela onda de feminicídios do Natal de 2020, quando ao menos seis mulheres foram assassinadas. Vilma fala em cultura de morte e numa “pandemia de assassinatos brutais de mulheres”. O Brasil ocupa a quinta posição no ranking mundial de feminicídio da OMS (Organização Mundial da Saúde), além de ter visto as denúncias de violência doméstica à Central de Atendimento à Mulher (número 180) escalarem 27% nos dois primeiros meses de pandemia de 2020.
“Nossas lágrimas são insubmissas, nos lembra a escritora Conceição Evaristo. Enquanto elas caem, a mulher traça um plano de sobrevivência.”
Para nos organizarmos politicamente diante do nível de opressão atual, da banalização de nossas vidas e do abandono de nossas comunidades. Temos um governo hipermisógino, e o recurso para enfrentar o feminicídio e da violência contra a mulher teve execução quase zero por parte do Ministério das Mulheres, da Familia e dos Direitos Humanos — e é até uma idiossincrasia usar esse nome.
A gente resolveu dar esse grito depois da matança do Natal de 2020 [quando ao menos seis mulheres foram vítimas de feminicídios no Brasil]. A violência contra a mulher é o lugar em que todas nos encontramos: brancas, negras, indígenas, héteros, LGBTQIA+, imigrantes.
Há uma guerra às mulheres, e a luta é para desmobilizar essa cultura de morte.
Tem uma sociedade que não se importa com as mulheres, com os negros ou com existências LBTQIA+. E que pensa ser possível ter uma indústria sem nós, desenvolvimento sem nós. Que é possível Brasil sem nós. E não é possível.
Por que o Brasil demorou tanto tempo para ter esse grau de perplexidade com a pandemia e as mortes? Porque, aqui, os que estão na fila pra morrer são vistos como são matáveis. É uma sociedade em que aqueles que poderiam fazer algo para parar a máquina de morte não carregam a perplexidade histórica que os alemães têm [em relação ao nazismo], por exemplo, ou que os americanos têm ao não usar a palavra “N” [“niger”, em inglês, expressão de cunho racista para designar uma pessoa negra].
Isso tem a ver com os horrores do escravismo e com os danos que ele causou a todos. Se era possível matar milhões, e a vida de um homem negro valia só até 35 anos de idade, se foi possível o estupro colonial e a ama de leite, uma mulher negra que precisava largar o seu filho na roda dos enjeitados para dar seu leite a uma criança branca, então essa sociedade não tem poder de indignação diante da tragédia.
Esse é um treinamento que essa sociedade ganhou em 355 anos de escravização. Essa sociedade foi destituída e altamente afetada. É essa amnésia que a resistência negra disputa ao longo de séculos.
Desde a Constituinte de 1988, à qual as mulheres chegaram graças à movimentação conhecida como Lobby do Batom, as feministas fizeram políticas contundentes.
Mas as mulheres adentraram a segunda década do século 21 de uma maneira muito empobrecida do ponto de vista das políticas de gênero.
São planos, programas e secretarias pensados para o enfrentamento à misoginia e ao patriarcado foram esvaziados, perderam recursos ou foram simplesmente desmontados a partir de 2015. Em 2016 veio a pá de cal na figura da PEC 95 [do teto dos gastos], que é uma guerra contra as mulheres trabalhadoras porque diminui recursos das políticas de educação, saúde e assistência social, decisivas para quem está na ponta e é responsável pelo cuidado na sociedade, que somos nós, mulheres.
Ou seja, é o próprio Estado que sabota essa mulher.
Esse desmonte tem impacto direto em nossas vidas porque estamos falando de miséria em escala, e essa miséria tem cor e gênero: somos nós, mulheres negras e trabalhadoras empobrecidas, que estão em situação ferrada. Então você tem que ver isso como uma guerra. Assim como as dezenas de milhares de mães que ficam órfãs de seus filhos assassinados anualmente. Soma-se a isso as dezenas de milhares de desaparecidos.
Mas o Brasil do século 21 é aquele em que não entregaremos nosso direito à representação. E aí vai ser luta.
É muito importante a gente discutir a maré negra feminista. O fenômeno Marielle Franco mexeu com algo que estava silenciado.
E isso foi impulsionado pela ocupação mais diversa das universidades brasileiras a partir das políticas de cotas. O Brasil continuaria nas catacumbas do século 19, do Estado colonial, sem esse risco mínimo das cotas.
A gente virou uma chave que é: não vamos entregar o papel de representação. Falharam no papel de nos dirigir e representar nossos interesses. Quem dorme com os olhos dos outros, não acorda na hora que quer. Vamos batalhar por uma reviravolta na representação das mulheres negras. Precisamos feminilizar e enegrecer o poder porque a nova estética política é a das mulheres negras.
Você precisa ter mecanismos institucionais formais. O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) precisa se dar conta de que não é da Suécia ou da Alemanha. Ele é do Brasil, e tem tido uma postura blasé em relação à carnificina da não representação. O Brasil é dos poucos países que tem um tribunal para cuidar do processo eleitoral. Essa estrutura nos custa bilhões, e não tem favorecido a democracia popular.
A ação que o movimento de mulheres negras fez em 2020 bateu, pela primeira vez, às portas do TSE. Foi a consulta proposta por Benedita da Silva (PT) e, em seguida, pelas mulheres do PSOL, e conquistou-se a obrigatoriedade de dividir recursos políticos com campanhas de negros.
Pensamos que o Brasil deveria ter um sistema de listas fechadas e alternadas para ampliar a representação de mulheres e negros. O TSE deveria estar pensando nisso.
O Brasil é um constrangimento mundial. A gente combate o negacionismo da extrema-direita e também de uma esquerda tradicional que nega a potência do feminismo e da luta antirracista. O país tem cerca de 35 partidos, todos controlados por homens, brancos ricos ou de classe média.
A política não se torna um lugar de criatividade se você pensa com um único grupo.
Olho para a Costa Rica, onde a economista negra Epsy Campbell é vice-presidenta, ou para os próprios EUA, com Kamala Harris… As eleições americanas viraram tabu entre players da política brasileira, garotos espertos da esquerda e da direita, porque, para debatê-las é preciso olhar para o Brasil, seu racismo e sua misoginia.
Lula é um líder político internacional que veio da classe trabalhadora. Ele teve ministras negras, que foram alçadas ao topo da República, algo inédito. Dividiu o poder como nunca. E colocou mulheres em pastas demarcadas pela cultura do patriarcado, como Dilma Rousseff no ministério das Minas e Energia e na Casa Civil. Com Lula surgiram a a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, a partir da qual foram construídas conquistas feministas como a Lei Maria da Penha de 2006, a PEC das Domésticas de 2013 e a criminalização do feminicídio em 2015.
Acho que Lula está atento. Ninguém vai ter coragem de bancar uma chapa toda de homens ou toda de brancos. Não vai dar para o PT voltar pra Brasilia sem repartir o poder com as mulheres negras.
Incomodou a muitas de nós ele não ter citado Dilma. Não sei se tinha a ver com o cálculo político, mas era importante ele ter falado em Dilma Rousseff. Essa lacuna não pode acontecer porque não se trata de qualquer assunto.
[Após discurso, durante coletiva, Lula recebeu um papel de um auxiliar, leu e, logo após, afirmou ter esquecido o nome da ex-presidente. “É imperdoável eu ter esquecido”, disse.]
Nós, ativistas, temos de falar cada vez mais alto para uma liderança da estatura de Lula. Não perco a esperança porque Lula nos ouviu nas cotas, que não aconteceriam fora do contexto Lula e Dilma — e olha o benefício que elas nos trouxeram. Mas isso não impede a gente de gostar, de ouvir e de ser crítica.