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Jorge Lucki: Para alcançar o status de grande vinho, não basta ser bom, tem que ter identidade

Artigo escrito por Jorge Lucki, e publicado pelo jornal 'Valor Econômico', no dia 11 de julho de 2024.

A premiada vinícola gaúcha Era dos Ventos tem um projeto ousado cujo mote foi resgatar métodos ancestrais, adotando vinificações pouco intervencionistas e valorizando variedades antigas já adaptadas ao local

Conhecer uma vinícola de perto proporciona uma compreensão mais profunda e uma apreciação mais completa do vinho. Conversar com o produtor andando no meio das vinhas e vendo as condições de cultivo permite entender como esses fatores se refletem no produto final. É comum eu me desviar de um roteiro previamente estabelecido só para passar por essa experiência.

Foi assim anos atrás, em que, terminada a Vinitaly, maior feira do setor vinícola da Itália, que se realiza anualmente em Verona, e antes de iniciar um programa de dez dias no Friuli, peguei a estrada rumo ao norte em direção à região do Trentino para conhecer a Foradori, cujos vinhos eu acompanhava havia um bom tempo.

Num primeiro momento, meu interesse pelos rótulos da Foradori foi pelos tintos que a vinícola produzia à base de teroldego, uma instigante casta local, em especial pelo Granato, seu topo de gama, e depois pelos brancos vinificados em ânfora. A despeito de ter enfrentado quatro movimentados dias de feira, a serena e cativante

Elisabetta Foradori, que comandava a vinícola fundada pelo avô em 1929, de bom grado concordou em me receber no dia seguinte à Vinitaly.
Nossa longa conversa, com direito a extensa degustação e um simpático almoço, teve início em frente a um dos primeiros vinhedos de teroldego que ela plantou quando começou a trabalhar para valer na vinícola, em 1984, logo depois de ter estudado dois anos no Istituto Agrario di San Michele all'Adige, perto de onde morava.
Filha única, foi esse o caminho que escolhera para ajudar a mãe a cuidar da vinícola depois do prematuro falecimento do pai, em 1976, quando ainda era adolescente.
Elisabetta logo percebeu que era necessário mudar o modelo da vinícola trabalhar para poder sobreviver, o que significaria investir em qualidade, deixando de vender vinho a granel à cooperativa local.

Os vinhedos da região até então eram plantados majoritariamente em sistema de pérgola, em fileiras espaçadas para permitir a policultura de subsistência - cultivavam-se verduras, feijão, batatas e frutas —, e com clones que privilegiassem grandes quantidades na ânsia de serem rentáveis. Boa parte dos seus vizinhos já estava substituindo a teroldego por variedades mais fáceis e com maior apelo comercial, caso de merlot e pinot grigio.

Apegada à tradição e acreditando no potencial da teroldego, desde que bem conduzida e plantada em locais apropriados, ela selecionou, em 1985, mais de 20 biotipos da casta a partir de dois dos melhores e mais velhos vinhedos da família, que ela mantém até hoje, replantando aos poucos o restante no sistema de espaldeira. No que se refere a vinificação, foram adotadas básicas cubas inox e estágio em grandes tonéis de madeira, os "botti", direcionando uma pequena parte, o melhor das vinhas velhas, para amadurecimento em barris de carvalho, de onde saiu, em 1986, o Granato, sua primeira criação.

Apesar do reconhecimento por parte dos consumidores e da crítica, e da boa situação financeira, Elisabetta, então casada e mãe de três filhos, revelou, com naturalidade e firmeza, que teve uma crise de identidade no fim dos anos 1990.


Era como se precisasse terminar ali um período de conhecimento científico e experiências técnicas, necessárias para produzir um bom vinho para o mercado, para entrar numa fase mais pessoal, emocional, de colocar para fora seu lado mais sensível, repensando seu papel como produtora de um vinho representativo do seu território.
Depois de um tempo em contato com outros produtores e se inteirar da filosofia antroposófica de Rudolf Steiner, Elisabetta adotou, em 2002, os preceitos biodinâmicos na vinícola, desenvolvendo uma abordagem minimamente intervencionista na vinificação — adeus, cubas de inox, entre outras mudanças.


Em meados da década de 2000, um novo salto: as ânforas de terracota, que ela viu na COS, vinícola da Sicília, cujo dono, Giusto Occhipinti, lhe apresentou o fabricante, um excêntrico artesão espanhol da região de La Mancha. O resultado bastante positivo das primeiras experiências fez com que Elisabetta as adotasse a partir de 2009 para um branco e dois single vineyards tintos.


As 150 ânforas de cerca de 230 litros caprichosamente dispostas na impecável adega subterrânea servem para vinificar a nosiola, uva nativa quase em extinção - Elisabetta tem pouco mais de dois hectares de vinhas velhas alugadas (é quase impossível comprar uma parcela), de um total de apenas 50 hectares ainda existentes na colina de Cognola, cercanias da cidade de Trento —, dando origem ao Fontanasanta; e dois crus de teroldego, o Sgarzon, de solo arenoso, e o Morei, de terreno pedregoso.

Reencontrei Elisabetta agora em São Paulo num almoço tranquilo depois de ela ter enfrentado dois dias intensos na Feira Naturebas, além de outros eventos paralelos.
Nada que tirasse sua serenidade e inata simpatia.


Nesse encontro, orquestrado pela sommelière adepta dos vinhos de baixa intervenção (não gosto do termo "vinhos naturais') Gabriela Monteleone, também participou Luis Henrique Zanini, criador e mentor da premiada vinícola gaúcha Era dos Ventos, um projeto ousado cujo mote foi resgatar métodos ancestrais, adotando vinificações pouco intervencionistas e valorizando variedades antigas já adaptadas ao local. Entre elas a peverella, com a qual é elaborado um excepcional vinho laranja, e a teroldego, uva trazida para a Serra Gaúcha pela segunda ou terceira geração de imigrantes trentinos que foram atrás de suas origens e trouxeram as primeiras mudas para a região.


À parte o bom tempo consagrado a uma descontraída conversa, temperada por dois ótimos Fontanasanta Nosiola, um 2017 e um "Cilindrica" 2018, que fica um ano a mais em ânfora, além de um Era dos Ventos Peverella 2021, o assunto mais interessante foi em torno da teroldego e a preservação de suas características em solo brasileiro, tomando como base as quatro safras — 2014, 2017, 2018 e 2020 — que Zanini trouxe de seu Era dos Ventos.

Produzidos a partir de um vinhedo plantado em 2004, uma parcela com apenas 800 plantas, os vinhos apresentam irretocável qualidade — perfeito equilíbrio, pureza e frescor da fruta, bom uso da madeira e taninos firmes integrados — e um senso de lugar irrepreensível, elogiado por Elisabetta. Sobretudo o 2020, que, respeitando as diferenças de clima e solo existentes entre o Trentino e Bento Gonçalves, mantém o caráter varietal da teroldego.


Para alcançar o status de grande vinho, não basta ser bom, tem que ter identidade. É o que o Era dos Ventos Teroldego demonstra: a casta imigrou, encontrou uma nova casa e se adaptou plenamente ao novo lugar, revelando nova expressão sem perder sua essência.

Conheça a obra "A Era dos Ventos: poesias, histórias e lendas do vinho”, de Luís Henrique Zanini, um dos mais destacados e reconhecidos nomes da enologia brasileira.

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