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Hans Kelsen e a Teoria Comunista do Direito

A Teoria Comunista do Direito, de Hans Kelsen, traduzido para o português por Pedro Davoglio e publicado pela Contracorrente, é livro precioso que explora a relação entre o direito e o marxismo.

Resenha escrita por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, e publicada no portal do Conjur, no dia 20 de outubro de 2024. Confira aqui.

A Teoria Comunista do Direito, de Hans Kelsen, traduzido para o português por Pedro Davoglio e publicado pela Contracorrente, é livro precioso que explora a relação entre o direito e o marxismo.

Karl Marx, me parece, sempre foi um desiludido para com o direito. Uma carta do jovem Marx a seu pai, datada de 1837, já definia essa desilusão. A carta, escrita quando Marx contava com 19 anos, revela-nos uma antropologia negativa da ordem jurídica. Essa – a ordem jurídica – só parece funcionar quando as instituições aparentemente se submetem a uma ordem supostamente livre de fissuras ou de conflitos, que de algum modo, ainda quando latentes, são imediatamente abafados.

Quais os pontos centrais de uma teoria marxista do direito? Tal é a pergunta que conduz A Teoria Comunista do Direito, de Hans Kelsen. O autor, o mais notório expoente do positivismo jurídico, surpreendentemente também nos revela profundo conhecimento das teorias marxistas do direito. Kelsen nos legou produção cultural marcada por visão humanista e abrangente, ao contrário do que afirmam seus detratores. O estudo sobre as diferenças entre o direito do Antigo Testamento para com o direito no Novo Testamento (cuja resenha será publicada oportunamente nessa coluna) é exemplo dessa abrangência.

O que também surpreende e afasta equívocos comuns sobre Kelsen é sua familiaridade com o direito marxista. Seu estudo sobre o direito no marxismo é análise crítica e isenta, que transcende clichês. “A Teoria Comunista do Direito” é dividido em nove capítulos.

O primeiro capítulo é dedicado à análise da ideia de direito em Marx e Engels. Kelsen explorou as noções marxistas que contrapõem realidade e ideologia, com ênfase na concepção de que o direito não seria dotado de autonomia; o direito se revelaria como ordem coercitiva imposta pelo Estado, projetando nas instituições as relações de produção e a divisão de classes.

Para Kelsen, a visão marxista do direito seria substancialmente irreal, por projetar uma sociedade futura na qual não haveria classes sociais e Estado, onde, consequentemente, não haveria direito também. Para Kelsen, a perspectiva de uma sociedade comunista perfeita é irrealizável. O socialismo real parece comprovar o postulado.

No capítulo seguinte, Kelsen analisou a teoria do Estado e do direito em Lênin, tomando como base o livro “O Estado e a Revolução”. Lênin também sustentava que o Estado seria ferramenta de opressão das classes dominantes e que, no socialismo, o Estado, no entanto, seria transitório. Estado e direito desapareceriam à medida que a sociedade de classes fosse superada.

Kelsen, sempre crítico à ideia de um Estado sem direito, porque objetivamente impraticável, ressaltou a incoerência de Lênin ao imaginar que, após a revolução, o Estado poderia ser sustentado por mera força do hábito.  Kelsen realçou a ingenuidade desse postulado, porquanto a natureza coercitiva do direito é fundamental para a manutenção da ordem social: é pura ingenuidade imaginarmos uma sociedade desprovida de normas.

No terceiro capítulo, Kelsen abordou a obra de P. I. Stuchka, autor de A Função Revolucionária do Direito e do Estado. Stuchka considerava o direito como um sistema de normas que expressaria a realidade social, instrumental para a revolução. Kelsen reconheceu que a abordagem representava um avanço em relação às teorias anteriores.

Stuchka não negava a necessidade de uma ordem coercitiva, mesmo no contexto de uma sociedade revolucionária. Contudo, Kelsen identificou certa ambiguidade nessa teoria. O direito seria, ao mesmo tempo, expressão da superestrutura ideológica e de necessidade funcional da sociedade. Para Kelsen, o direito soviético seria uma ordem coercitiva, que se mostrava como uma ordem natural, o que implicaria um retorno, ainda que velado, às ideias do direito natural, que Kelsen criticou e problematizou ao longo de sua obra. Basta conferir o excerto “A doutrina do direito natural perante o tribunal da ciência”, que se encontra em seu livro “O que é Justiça”, traduzido por Luís Carlos Borges e publicado pela Martins Fontes.

Kelsen também explorou a doutrina jurídica de E. B. Pachukanis, um dos mais influentes teóricos marxistas do direito, autor de Teoria Geral do Direito e do Marxismo. Para Pachukanis, o único direito que existiria verdadeiramente é o direito privado; o direito público seria construção ideológica burguesa. Kelsen reconheceu a ousadia de Pachukanis em desconstruir a dicotomia entre direito público e direito privado. Porém, criticou a simplificação excessiva dessa teoria. Pachukanis argumenta que, em uma sociedade comunista, o direito penal deixaria de existir, já que a proteção à propriedade privada, que é o fundamento do direito burguês, desapareceria. Para Kelsen, no entanto, tal perspectiva não leva em conta a complexidade das interações sociais e a necessidade de normas regulatórias para manutenção da ordem, independentemente da estrutura econômica.

Nos capítulos seguintes, Kelsen examinou as teorias de juristas soviéticos como Vichinski, Golunski e Strogovich. Esses autores, ao contrário de Pachukanis, reconheceram a importância do direito como ordem coercitiva que persistiria mesmo em um Estado socialista. Kelsen observou que esses juristas tentavam conciliar o marxismo com uma concepção mais pragmática do direito, reconhecendo que a transição para o comunismo pleno é lenta e que o direito, enquanto ordem normativa imposta pelo Estado, não poderia ser eliminado de imediato. Para Kelsen, mais uma vez, essa posição aproxima-se da doutrina do direito natural.

No último capítulo Kelsen refletiu sobre o direito soviético no contexto internacional, enfatizando sua natureza de “direito de classe”. A perspectiva marxista de que o direito internacional burguês serviria aos interesses das potências capitalistas foi desafiada pela prática soviética, que também recorreu ao direito para proteger interesses próprios. Kelsen expos as contradições do direito soviético, que, apesar de pregar uma sociedade sem Estado e sem direito, utilizaria o aparato jurídico para consolidar o poder do Estado socialista. Kelsen é cético quanto à possibilidade de uma sociedade sem direito. Quem, com algum juízo, quem não o seria?

A Teoria Comunista do Direito é livro provocativo que expõe uma crítica detalhada das teorias jurídicas marxistas. Kelsen, reconhecido como o maior teórico do positivismo jurídico, demonstra conhecimento profundo do direito comunista, desmistificando as simplificações que frequentemente acompanham as discussões sobre o assunto. A crítica ao idealismo utópico e sua insistência na necessidade de uma ordem jurídica coercitiva, mesmo em uma sociedade socialista, revelam coerência intelectual, que é recorrente na obra de Kelsen. O livro é um convite à reflexão sobre as complexas interações entre direito e Estado.

O leitor conta ainda com uma valiosa apresentação à edição brasileira, por Marcelo Cattoni, Pedro Serrano e Rafael Valim, reconhecidos estudiosos, tanto da obra de Kelsen, quanto das várias teorias críticas do direito.

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